A decisão era basicamente esta: vamos rir ou vamos chorar com a nossa passagem pelo Turquemenistão? Decidimo-nos pela primeira, afinal de contas estamos de férias e precisávamos de Aventuras no Turquemenistão!
Para atravessar do Irão para oriente, no sentido da Rota da Seda, tínhamos duas opções: Turquemenistão (uma das ditaduras mais fechadas do mundo) ou o Afeganistão (que dispensa apresentações desde o 11 Setembro de 2001). A nossa escolha recaiu sobre o Turquemenistão (embora continue a achar que foi a opção errada). Mas são assim as Aventuras no Turquemenistão!
Saímos de Mashhad eram 8 horas da manhã a caminho da fronteira. De táxi partilhado chegamos à fronteira de Sarakhs ao fim de duas longas horas de viagem debaixo de um calor abrasador. Começamos logo por ter que “lutar” bem para pagar o preço negociado previamente. Na fronteira, lá pegamos nas mochilas e lançamo-nos à conquista do Turquemenistão.
Sair do Irão foi coisa para duas horas. Entre revista de mochilas e carimbos no passaporte as coisas pareciam que não andavam. Contávamos apenas com a companhia de três mulheres e dois homens do Turquemenistão que tinham vindo fazer compras a Mashhad. Iam carregados de coca-cola, detergente da roupa, baldes de plástico e um ar condicionado. Juntos, entramos num autocarro para atravessar a terra de ninguém. Arame farpado, militares armados, torres de vigia, gradeamentos electrificados e uns minutos depois estávamos no lado do Turquemenistão e as Aventuras no Turquemenistão iam começar.
Aí, descobrimos que o ar condicionado dos nossos companheiros era uma oferta para os guardas fronteiriços. Talvez por isso, eles tenham passado a fronteira em poucos minutos e nós aguardamos mais de duas horas. Primeiro montaram o ar condicionado novo. Depois, esperamos um tempo interminável pelo carimbo no passaporte e no visto. Entradas sucessivas de guardas e militares, alguns deles que bordeavam o trabalho infantil, com os nossos passaportes na mão e mais um e outro impresso para preencher. Quantos dólares têm? Quantos euros têm? Que levam? Declaração para a frente, declaração para trás. Lá passamos para o controle minucioso das mochilas. Nem as minhas meias, com cheiro pestilento, os demoveu da sua inspecção. Entre roupa interior, comida, livros e material de montanha a inspecção continuou. De repente sai um homem de bata branca de dentro de um dos compartimentos. Virei-me para o Rui e não resisti a um apontamento de humor:
– Agora vamos passar à inspecção sanitária. Baixa a calcinha!
– Carla… brinca, brinca!
Afinal o médico limitou-se a passear pelo espaço que, diga-se de passagem, faz lembrar as imagens que tenho dos filmes de espiões na Guerra Fria. Os guardas fardados a rigor com chapéus idênticos aos dos uniformes da Coreia do Norte. Mais de duas horas depois e após os guardas se certificarem que já não havia mais ninguém para atravessar a fronteira, deram-nos aval positivo para avançar.
– Podem seguir e têm 5 dias para atravessar o Turquemenistão.
O primeiro, já tinha passado. Eram 16h! Caminhamos um pouco e mostramos os passaportes num portão enorme. Os guardas abrem-nos o portão, fazem-nos sinal com a mão para avançarmos e fecham o portão nas nossas costas. Em frente uma estrada de terra batida que parece não ligar a lado nenhum e deserto de um lado e do outro.
– E agora?
– Agora, estamos fxxxxxs (vejam lá o meu desespero linguístico)!
Um grupo de homens aproxima-se. Não falam inglês mas sabem apontar para o carro de dizer:
– Ashgabat – 80USD; Mary – 60USD.
– O quê? Esta gente é louca! Se eu tivesse este dinheiro casava-me já. Vamos voltar já para o Irão!!! – Digo eu.
Depois de uma grande discussão na fronteira, (o Rui tentava negociar com os homens e eu tentava apanhar boleia dos camionistas que saiam) percebemos que estávamos nas mãos deles. Os camionistas que passavam faziam-me sinal de que não podiam dar boleias. Era o fim e o início das Aventuras no Turquemenistão!
O Rui manteve o sangue frio, ao contrário de mim que já estava quase a destratar os homens. Com esse sangue frio conseguiu que um dos homens nos levasse para Tejen, entre Mary e Ashgabat, por 20USD. Supostamente aqui havia uma estação de comboio ou autocarros. Depois de duas horas de viagem, acompanhados sempre por pó, camelos que pastam na berma da estrada e plantações de algodão, chegamos a Tejen.
Tejen está longe, muito longe, de ser uma metrópole. Podia mesmo ser apenas um cruzamento na estrada principal mas parece que é uma povoação. O motorista deixa-nos ficar na estação e diz-nos:
– Ashgabat 2USD.
Pegamos nas mochilas e entramos na estação. Ok, estação é mais uma vez um eufemismo. O edifício não passava de um barracão de madeira com uma caixa de vender bilhetes que só abria às 21h. Eram 16.30h. Estávamos na estação de Tejen, sem saber o que fazer. Não havia lá ninguém a quem perguntar informações e mesmo que houvesse de que serviria? Ninguém aqui fala inglês. O horário de comboio era indecifrável. Para começar estava em russo, o que não era mau, mas até para os locais não era explícito.
De repente chega um senhor. Eu e o Rui abordamo-lo prontamente. Devíamos ter um ar completamente desesperado porque quando ele nos disse que o primeiro comboio para Ashgabat era à meia-noite nós sentimo-nos desfalecer. Para Mary, só no dia seguinte. Mesmo sem falar inglês, o senhor conseguiu perceber o nosso desespero.
– Bus? Mary or Ashgabat? – Atacamos nós!
O senhor não sabia o que fazer. Tentou explicar-nos como chegar aos micro-bus (sim porque buses no Turquemenistão só de manhã) mas não estava a conseguir explicar-se. De repente, faz-nos sinal para irmos com ele. Metemos as mochilas dentro do seu carro e ele levou-nos para a paragem dos micros. Para Ashgabat, a capital, já não havia nada, a nossa única opção seria Mary. Esta era uma decisão difícil de tomar.
Se fossemos para Mary estávamos a andar para oriente e já não teríamos tempo para regressar a Ashgabat. Para ir para Ashgabat teríamos que passar ali horas à espera de um comboio que alegadamente passaria a meio da noite. Era uma decisão difícil. Não porque fizéssemos questão de ir a Ashgabat mas porque era a partir daí que contávamos visitar Darvaza e a cratera de gás. Com vontade de chorar (confesso) tive que decidir caminhar para oriente e deixar para trás Darvaza. Custou-me muito, principalmente porque foi por isso que aqui vim. Era esse o meu objectivo mesmo nestas Aventuras no Turquemenistão.
Apanhamos um micro-bus para Mary. Em pouco mais de duas horas de viagem estávamos a chegar à cidade. Pelo caminho acompanham-nos plantações intermináveis de algodão. Uma vez em Mary, ficamos perto da Vokzal, a estação de comboio, que exibia um cartaz enorme do presidente, e começamos a procurar lugar para dormir. Os hotéis pedem preços exorbitantes – 100USD/noite.
– Rui, eu não consigo sobreviver aqui. Não temos dinheiro para isto.
Tentamos outros mas ou estavam fechados ou os preços eram idênticos. A noite caia e nós não tínhamos onde dormir. Os militares nas ruas seguiam o nosso percurso com o olhar. A sua presença é um pouco incómoda. Andam sempre em grupos ou estão parados na entrada das ruas e em frente aos maiores edifícios.
Uma senhora aproxima-se de nós. Oferece-nos a sua casa para ficarmos durante a noite a troco de 60 manats. Não era muito e ainda estivemos tentados a aceitar. Só declinamos esta oferta porque começaram-se a aproximar-se várias meninas, algumas delas bem pintadas e com um ar bastante libertino que me deixou com a pulga atrás da orelha.
– Se calhar devíamos ter ficado em casa da senhora. – Digo eu ao Rui.
– Devíamos. Acho que teria sido uma noite bem passada. ehehehhe!
Já estava de noite quando arranjamos um hotel ranhoso. Ranhoso não é bem o termo. O termo mais correcto era mesmo nojento. Pagamos 55USD/noite por um quarto estilo soviético, com WC, mas que já não via limpeza, remodelação e arrumação desde os tempos áureos da Guerra Fria. O quarto cheirava a mofo, a cama tinha as molas do colchão a sair para fora e a casa-de-banho fazia inveja às da Índia. Isto eram mesmo Aventuras no Turquemenistão!
Não temos roupa de cama, nem toalha, nem pequeno-almoço, nada! Mas temos uma dezhurnaya, uma mulher que está encarregue de controlar tudo o que se passa no nosso andar, a saber o sexto andar de um prédio soviético dos anos 70.
Depois de uma noite mal dormida levantamo-nos para comer qualquer coisa e tentar visitar Merv, uma das principais cidades da Rota da Seda. Descobrimos que afinal dormimos com companhia: o Ratatui. As bolachas que tínhamos para o pequeno-almoço, e que estavam pousadas sobre uma pequena mesa, tinham um rato lá dentro e estavam todas ruidas. Com o pequeno-almoço arruinado e com as costas feitas num oito decidimos partir logo para Merv. O quarto era muito mau mas não havia outra opção na cidade. Renovamos os votos para uma segunda noite e a aventura continuou.
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Aventuras no TURQUEMENISTÃO – Rir ou chorar no Turquemenistão? – Parte 2
Quando regressamos de táxi de Merv e tentamos trocar dinheiro. Descobrimos que no Turquemenistão não nos trocam dinheiro nas casas de câmbio oficiais. Porquê, não sabemos. Talvez seja o nosso ar altamente ameaçador! As coisas não estavam mesmo a correr bem por terras do Turquemenistão!
Trocamos alguns dólares no mercado negro e compramos comida no mercado local. Dêmos uma volta pela cidade, visitamos o bazar e recolhemos ao nosso “humilde” quartinho.
– Meu Deus! Vamos lá dormir com o Ratatui mais uma noite. – Disse eu. – Ratatui, cheguei!
O Ratatui não respondeu mas eu tenho a certeza que ele me vigiou enquanto nós comíamos umas sandes. Imagino-o com aqueles olhinhos a piscar, junto dos filhotes todos, debaixo de um vão de madeira a olhar para a minha comida.
Na TV passa uma notícia sobre as festas de Águeda, em Portugal. Será coincidência? Eu não acredito em coincidências.
Com dois dias passados no Turquemenistão decidimos despedir-nos do país ao terceiro dia. A julgar pelos preços e pela liberdade de movimento, um dia teria chegado para atravessarmos o país.
De manhã bem cedo dirigimo-nos para o local de onde saem os táxis partilhados. Os taxistas pareciam hienas agressivas tentando abraçar-nos, puxar-nos e empurrar-nos para dentro dos seus táxis. Devem ver tantos turistas por cá que até se salivam quando aparecem dois!
Depois de muito negociar o preço lá acordamos com um jovem taxista a viagem entre Mary e Turkemenabat. No final da viagem, nova discussão na hora do pagamento (já que os preços acordados nunca são os finais) mas nós mantivemo-nos firmes e nem mais um manat. Apanhamos outro táxi agora para Farab, na fronteira com o Uzbequistão. Antes de chegar à fronteira começa a fila de camiões. Tem vários quilómetros de comprimento e conta especialmente com camiões turcos, iranianos e do Turquemenistão. Afinal, a Rota da Seda ainda está viva só que agora faz-se de veículo de quatro rodas e não de camelo.
Quando chegamos à fronteira o guarda faz-nos sinal: está fechada. Os guardas estão em hora de almoço. A fronteira está fechada entre as 12h e as 14h. Temos que esperar. O que fazer? O sol está no seu pico, o calor é insuportável. Felizmente trouxemos connosco uma garrafa de água congelada. Tostamos ao sol durante mais de uma hora, procurando esconder-nos numa pequena sombra na cabine do militar. Ali almoçamos, a tostar e a destilar.
Às 14h lá entramos na fronteira, desta vez com procedimentos mais rápidos mas com direito à mesma inspecção às mochilas. Durante esta inspecção descubro que transporto um emigrante ilegal! As massas que trago comigo desde Portugal para os trekkings na montanha estão roídas pelos ratos.
– Será que o Ratatui veio na minha mochila? – Digo eu ao Rui.
O guarda parece não achar grande piada, apesar de me conceder um sorriso simpático. Disfarçadamente fecho a mochila e escondo o pacote ruído.
– Meu Deus! A minha mochila deve estar arruinada por dentro.
Entre carimbos, autocarros, mais autocarros, impressos em russo e mais carimbos lá atravessamos a fronteira. Eram 16h quando pisamos o solo do Uzbequistão. A nossa travessia pelo Turquemenistão tinha chegado ao fim.
Ao contrário da maioria dos lugares por onde já viajei, aqui não gostei de estar. Senti-me correr. Mas, confesso que corri com vontade. O Turquemenistão tem bonitos campos de algodão, edifícios soviéticos majestosos, uma cidade de adobe (Merv) digna de uma visita, mas tem demasiados militares, demasiados Ratatuis e é demasiado caro. Três dias foram mais do que suficientes. Os dois dias que “ganhamos” vamos aproveitar para descansar em Bucara ou Khiva, no Uzbequistão, porque afinal, ainda agora acabamos de entrar na Ásia Central.
Será que rio ou choro com esta passagem pelo Turquemenistão? Prefiro rir, afinal de contas estou de férias e até conheci o Ratatui!
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Se vai viajar no Turquemenistão, estes são alguns artigos no nosso blogue que lhe podem ajudar a preparar a sua viagem
- VISTO DO TURQUEMENISTÃO – Tudo o que precisa de saber para tirar o visto do Turquemenistão está neste artigo.
- VIAJAR NO TURQUEMENISTÃO – Um artigo que deve ler se quiser viajar no Turquemenistão e para o preparar para a sua viagem.
- VISITAR MERV – Tudo o que precisa de saber para visitar as ruínas da cidade de Merv, no Turquemenistão, uma das cidades mais importantes da Rota da Seda.
- AVENTURAS NO TURQUEMENISTÃO – Um artigo em forma de crónica sobre a nossa viagem no Turquemenistão, com muitas aventuras para cruzar todo o país ao longo da viagem da Rota da Seda.
- VIAJAR NA ROTA DA SEDA – Tudo o que precisa saber sobre a Rota da Seda, nomeadamente a sua história, países que atravessa e como fazer esta viagem.
Estes são os artigos sobre o Turquemenistão que fizemos durante a nossa viagem no Rally Mongol
- RALLY MONGOL – DE MASHHAD AO TURQUEMENISTÃO – Um artigo em forma de crónica de viagem sobre a nossa aventura a passar a fronteira entre o Irão e Turquemenistão, e a nossa passagem por Ashgabat, a capital do Turquemenistão.
- RALLY MONGOL – VISITAR DARVAZA – Um artigo em forma de crónica de viagem sobre a nossa visita a Darvaza, as portas do inferno, no Turquemenistão.
- RALLY MONGOL – EM DIRECÇÃO AO MAR ARAL – Um artigo em forma de crónica de viagem sobre a nossa viagem de saída do Turquemenistão e em direcção ao Mar Aral.