Visitar KAIROUAN e aprender a conturbada história do Islão | Tunísia

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O passado da área que hoje conhecemos como Tunísia é extremamente rico, tendo sido muitos os exércitos invasores que varreram a região, e muitos os impérios que dominaram e governaram o território, sendo que locais como Cartago e Dougga são testemunhos dos grandes impérios de Cartago e de Roma. Mas o Islão, o império que se seguiu, foi aquele que influenciou mais profunda e prolongadamente o norte de África, desde que, em 632, o profeta Maomé morre, e o mundo à volta do Mare Nostrum mudaria para sempre. O símbolo por excelência do domínio islâmico do norte de África é a cidade de Kairouan, na Tunísia.

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Hoje, Kairouan é Património Mundial da UNESCO, e são muitas as atracções que convidam a uma visita, todas um testemunho do passado islâmico da cidade, mas também uma recordação da sua importância presente, pois ainda hoje muitos muçulmanos sunitas consideram Kairouan como a quarta cidade mais sagrada do Islão, atrás apenas de Meca, Medina e Jerusalém, sendo que sete visitas à Grande Mesquita de Kairouan (ou Mesquita Sidi Oqba) é equivalente a uma visita a Meca.

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Nós chegámos à cidade no dia 31 de Dezembro. A mesquita fechava às duas da tarde (fecha a essa hora todos os dias), por isso resolvemos passar por lá mesmo antes de irmos ao hotel. Embora a sala das orações esteja vedada aos não-muçulmanos, o pátio da mesquita está aberto a todos os visitantes. Entrámos por uma porta coroada por uma cúpula, e ficámos maravilhados com a grandeza e beleza do edifício. Embora a mesquita original (670) tenha sido destruída, a maior parte do que hoje vemos tem mais de 1200 anos. O minarete quadrado e com três andares domina sobranceiramente o pátio, de onde podemos espreitar a sala de orações, onde sobressaem as colunas retiradas de templos bizantinos e romanos, e o mihrab e minbar, com azulejos e madeira vindos de Bagdade.

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Kairouan é a cidade mais conservadora da Tunísia; à noite, não se vêem mulheres nas ruas e os cafés têm presença exclusivamente masculina. O calendário islâmico impera e o dia 1 de Janeiro não tem um significado especial, por isso festejámos a passagem de ano no quarto do nosso hotel (que era giríssimo).

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O conservadorismo (crescente, dizem alguns) que se faz sentir resulta da história conturbada deste território e da luta entre os dois principais ramos do Islão: o sunita e o xiita. Após a morte de Maomé, dá-se a inevitável luta de poder, e o Profeta é sucedido pelo seu sogro, e é fundado o califado Ortodoxo (Rashidun), que duraria apenas até 651, tendo sido governado por quatro califas “bem guiados”, todos companheiros muito próximos do Profeta, eleitos pelos seus seguidores, ao contrário dos governantes seguintes, cuja sucessão passaria a ser hereditária. Seguiu-se o califado Omíada (Umayyah), com capital em Damasco, e a subsequente grande expansão do Islão. Oqba ibn Nafi, um general que serviu os califados Rashidun e Umayyah, foi a figura principal dessa expansão, varrendo o território do norte de África. Diz a lenda que só parou quando foi confrontado com as águas do Atlântico, tendo afirmado: “Ó Deus, se o mar não me tivesse impedido, eu teria galopado para sempre como Alexandre, o Grande, defendendo a Tua fé e lutando contra os descrentes!”. E foi ele que fundou a cidade de Kairouan, em 670, que se tornaria, mais tarde, a cidade mais importante do norte de África e sede do poder exercido pelos emires Aglábidas, representantes independentes do Califado Abássida (terceiro califado islâmico), com capital em Bagdade.

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Kairouan tornar-se-ia assim a capital de um território que equivalia à Tunísia e partes da Argélia e Líbia, numa altura em que o Islão e a modernidade andavam de mãos dadas. As ciências, como a astronomia e a medicina, assim como as artes, eram promovidas pelos governantes islâmicos e, enquanto a Europa passava por um período de séculos de trevas que se seguiu à queda do império romano, o califado islâmico era um império que governava territórios desde a Península Ibérica até à Índia. Testemunho desse período áureo são as cisternas Aglábidas em Kairouan, uma obra-prima da engenharia, que ainda hoje podem ser admiradas fora das muralhas da cidade.

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Os túmulos (zaouia) de homens santos que se podem visitar por toda a cidade são testemunhos mais recentes da história, e lembram-nos que o carácter religioso de Kairouan não se limita aos tempos dos califados, mas estende-se até ao império otomano e aos nossos dias.

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Outro dos lugares mais importantes, e característicos, da cidade é o Bir Barouta, um poço, provavelmente escavado aquando da fundação de Kairouan, mas rodeado por um edifício do século XVII. Diz a lenda que Oqba ibn Nafi encontrou no local um cálice que teria desaparecido de Jerusalém, tendo dali brotado água desde então. E desde então ,o local é venerado como tendo ligação a Meca e cuja água tem propriedades especiais. Hoje, um camelo continua a virar as rodas do mecanismo que puxa a água e é um espectáculo único ver este ritual a ser praticado após tantos séculos.

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Kairouan tinha assim tudo para prosperar durante muito tempo, mas as tensões no seio do Islão desde o início se fizeram sentir, e o choque entre os ramos sunita e xiita acabaria por moldar a história desta região até aos dias de hoje. No norte de África, o emirado Ablácida veria o seu fim em 909 às mãos dos Fatimitas, alegados descendentes de Fátima, filha do Profeta, que seguiriam para o Egipto, fundando a cidade do Cairo. As lutas entre sunitas e xiitas levariam à destruição de Kairouan em 1057. A cidade nunca recuperaria a sua glória passada, mas a partir do século XVIII, voltaria a ter um papel importante como centro de aprendizagem e um dos locais mais sagrados do Islão.

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Hoje, Kairouan oscila entre o conservadorismo islâmico e a abertura ao turismo. Mesmo no período áureo do turismo na Tunísia, Kairouan manteve-se sempre à margem, fazendo parte do circuito de visitas de um dia, mas não sendo um destino de permanência. Para os visitantes, há imensos pontos de interesse. A medina de Kairouan é uma das mais bem preservadas da Tunísia, sendo os souks (mercados) o ponto nevrálgico do movimento do quotidiano.

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Kairouan é o centro de produção de tapetes do país desde os tempos do império otomano e é o melhor local para se fazer uma compra a um preço justo, nomeadamente fazendo uma visita à antiga casa do governador da cidade (Maison du Gouverneur), agora uma sumptuosa e lindíssima loja de tapetes.

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As mesquitas e os túmulos atraem também os olhares dos visitantes, mas o seu interior está vedado aos não-muçulmanos. E, com o advento da Primavera Árabe, e o surgimento do autoproclamado “Estado Islâmico”, a Tunísia tornou-se um dos países “fornecedores” de combatentes radicais islâmicos, e Kairouan é o principal “centro exportador”, tendo sido ali doutrinados os alegados atacantes nos recentes atentados terroristas no país e manifestações a favor de um Estado Islâmico (fotografia da BBC, Junho 2015).

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E aqui fecha-se o círculo da história. O “Estado Islâmico” combate pelas mesmas ideias dos ilustres governantes do passado, e os seus defensores sonham com um novo califado que retome a glória de um Islão que domine o Mediterrâneo. E é nesta encruzilhada que a Tunísia se encontra. Uma parte da população é constituída por muçulmanos moderados, quer uma aproximação à Europa, e o regresso do turismo. Uma outra parte, não negligenciável, é feita de radicais que vêem os europeus como “cruzados” e que, não só não querem os europeus na sua terra, como querem também reconquistar territórios que já estiveram sob domínio islâmico, inclusive na Europa. Durante muitos anos, as ditaduras e as democracias “musculadas” no norte de África e Médio Oriente mantiveram subjugados os elementos mais radicais destas sociedades. Paradoxalmente, o sonho da democracia veio mostrar que o resultado de eleições no mundo islâmico pode não ser aquele mais favorável ao mundo ocidental. Só o futuro dirá como a Tunísia e o resto do mundo islâmico irá evoluir. A história continuará cá para nos ajudar a compreender o que acontecerá, e Kairouan continuará com certeza a desempenhar um papel importante no futuro.

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Rui Pinto

Físico de formação mas interessado em todos os aspectos da cultura e história da humanidade. As viagens são o meio privilegiado para um aprofundamento do conhecimento do mundo, das suas gentes e do nosso papel na vida.

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4 Comentários

  1. Paulo Relvas diz: Responder

    Gostei muito de ler o artigo! Ainda por cima conheço os locais descritos. E já agora relembrar que a primeira experiência “democrática” na região ocorreu na Argélia no início dos anos 90 do século passado. Das eleições livres resultou uma vitória estrondosa da FIS (frente islâmica de salvação, se não me engano). Resultado: FIS ilegalizada. Defendia ideias fundamentalistas, na linguagem atual. É uma chatice quando as eleições não dão o resultado que queremos…. Temos agora um exemplo do outro lado do Atlântico.
    Abraços!

    1. Rui Pinto diz: Responder

      Obrigado, Paulo. A história repete-se em quase todos os países muçulmanos… A liberdade democrática tem destas coisas! 🙂

  2. Excelente artigo Rui.
    Mais do que “o sonho da democracia veio mostrar que o resultado de eleições no mundo islâmico pode não ser aquele mais favorável ao mundo ocidental” é saber se é/foi bom para os próprios. Essa é que é a questão importante, a meu ver.

    1. Rui Pinto diz: Responder

      Obrigado, Paulo. E tens razão! 🙂

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