O Sudão é um milagre da vida. A vida, tal como a pensamos, tem tudo para não existir ali. Um país com 90% do território desértico desafia diariamente a resiliência das suas gentes. Homens, mulheres e crianças lutam todos os dias para sobreviver. Sobrevivem num ambiente inóspito e praticamente inabitável. E no entanto, a vida acontece.
A água é fonte de vida. As margens do leito de inundação do Nilo definem o tamanho das cidades. A capacidade de transportar água do Nilo define a extensão dos campos. A força e vontade de sobreviver define a distância a que se vive no deserto.
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Atravessando o Sudão são muitas as vezes que nos deparamos com animais mortos no deserto. Cabras, camelos, vacas. Atacados por predadores ou simplesmente sucumbiram à seca extrema. Não é fácil sobreviver ali. E no entanto há quem o faça.
POÇOS DE ÁGUA FÓSSIL
No meio do nada, perdido o deserto, há pontos de água, poços, onde todos os dias, homens e mulheres recolhem água para sobreviver. Fazem quilómetros a pé, acompanhados por burros, para poderem levar o elixir da vida para suas casas e assim conseguirem sobreviver.
A água que ali existe é fóssil, armazenada há milhares de anos, quando outrora chovia nestas regiões. Os sudaneses sabem que é ali, naquele poço que está o milagre da vida. Colhem a água com cuidado. Cada pinga que cai na areia é imediatamente evaporada e eles sabem que não voltará a regressar.
Toda a água colhida naqueles poços, depois de ser consumida, integrará o ciclo da água mas jamais regressará ao Sudão. A precipitação acontecerá noutro local do planeta, provavelmente em lugares com chuvas cada vez mais abundantes. Sendo assim, todos sabem o quanto é importante preservar desta água. É ela o elixir da vida.
A vida pouco mudou nos últimos séculos no deserto do Sudão. As mulheres continuam a ir buscar a água, muitas vezes acompanhadas por homens e crianças. Os burros continuam a desempenhar um papel essencial, transportando a água, a “móia”, de regresso a casa. Todos conhecem o valor daquela preciosidade e por isso até o burro se move lentamente não deixando derramar nem uma gota pelo caminho.
Uma família abastece-se de água para a semana. Tem cinco burros, cheios de bidões de plástico, provavelmente o único upgrade dos últimos séculos. A casa fica lá ao longe, apontam-nos para a linha do horizonte. Os burros já iam a caminho quando nos despedimos desta família, à qual me juntei para perceber que trabalho braçal envolvia puxar a água do poço e como era feito. “Masallam”, digo-lhes. “Até um dia”, Inshallah!
TRIBOS RASSADIA
Porém o milagre da vida aparece quando menos se espera. Alguns quilómetros à frente, debaixo de um calor abrasador e de uma aridez extrema uma família Rassadia, uma etnia sedentária sudanesa, que habita o deserto, recebe-nos na sua casa.
Dentro de uma cabana de adobe, não maior do que 20 metros quadrados, onde cinco mulheres, dois homens, dois rapazes e duas crianças vivem. Mahima é a matriarca da família. 90 anos de vida no deserto e uma família ao seu encargo. Com lábios pretos tatuados e olhos raiados de branco, tudo indica que já não vê quem a visita. Filhas, filhos, genros, noras, netos, netas e bisnetos vivem à sua volta.
Há duas habitações de adobe onde dormem. Não tem mais do que 9 metros quadrados. Uma terceira para receber convidados. O gado organiza-se entre a casa e as vedações feitas com plantas cheias de picos, protegendo assim os animais dos ataques das raposas do deserto. Entramos para tomar chã.
– “Assalam Aleikum”
– “Aleikum Salam”
– Tamam!
– Tamam!
E assim começam as conversas. Dali para a frente, é campo de linguagem gestual. É hora de sorrir, rir e falar com o coração. A barreira linguística é do tamanho do mundo, assim como a generosidade dos seus habitantes.
Tecidos velhos e gastos pelo tempo escondem o milagre da vida. Por trás dos panos coloridos e sujos do pó do deserto… o choro de uma criança. Um bébé!
A vida nasceu no deserto. Tem um mês e é tão pequeno que quase cabe na palma de duas mãos. Tamila deu à luz ali, naquela cama onde agora me convida a sentar, escondida dos homens da casa pelos mesmos panos velhos e sujos.
Enrolada num cobertor, Tamila tenta acalmar o “baby” cujo nome não cheguei a perceber. É “wallet”, “rapaz”, diz-me alegre e sorridente. Ali, o filho mais velho entra e sai da cama. Não tem mais do que dois anos.
O bebé não pára de chorar. Com olhos negros como a terra que o viu nascer, mas cheio de vida! Teima em sobreviver, quase sem água nem comida. Tamila amamenta-o. E ali, diante dos meus olhos, por trás do pano onde os homens conversam, vejo o milagre da vida acontecer. Não sei precisar o tempo que ali estive, mas sei dizer que senti a história da humanidade passar diante dos meus olhos.
Com sorrisos e linguagem gestual conversei com as mulheres e a intimidade criada foi tanta que me convidou para amamentar o seu bebé. Não podia, claro! Não me atrevi a pedir uma fotografia. Pareceu-me invasivo e que arruinaria o momento. Porém Tamila surpreendeu-me…
Pediu-me para fotografá-la. Inclusive a amamentar a criança. Pediu-me que lhe enviasse as fotografias depois por Mohamed. Promessa que fiz e que tenciono cumprir assim que chegue a Portugal. Não queria acreditar. O meu coração transformou-se em água, o elixir da vida no deserto.
Senti-me a mulher mais privilegiada deste mundo por ter testemunhado e entrado na privacidade daquela cama, que no fundo era um quarto. Os meus olhos vinham raiados de água no momento em que me despedi. Tanta vida num local tão pequeno e inóspito do planeta.
PIRÂMIDES DE MEROÉ
Se o dia não poderia ser mais perfeito, ainda o foi. Depois de almoçar em Atbara, rumámos para Meroé, o local onde hoje se situam as maiores pirâmides do Sudão, as Pirâmides de Meroé.
Espalhadas por um complexo extenso, começamos por visitar a Templo do Sol e o Cemitério do Oeste das Pirâmides de Meroé. Também ali, dezenas de crianças surgem das dunas do deserto, com sacos cheios de artesanato para vender. Os olhos negros mendigam pelo nosso interesse. Precisam de vender alguma coisa para sobrevivem. Tentámos ajudar, negociando sempre, e contribuindo pontualmente para as economias familiares.
Do outro lado da estrada está o complexo de pirâmides de Meroé. Duas áreas distintas de pirâmides, norte e sul, iluminadas pelos raios poentes do sol que já testemunharam milénios.
Hoje o seu grau de conservação surpreende tudo e todos, apesar das tentativas nefastas causadas por um italiano que, no século XIX, convenceu o governo sudanês a destruí-las em busca de ouro que, alegadamente, se encontraria no seu interior. As agruras do tempo deixaram as marcas nas pirâmides de Meroé, mas a mesma areia do deserto que hoje é empurrada pelo vento e que erode as pirâmides, também as cobre e as preserva de malfeitores e saqueadores de tesouros.
Apesar do seu tamanho modesto, quando comparadas com as Pirâmides de Gizé, no Egipto, os 30 metros das pirâmides de Meroé impressionam. Mas o que impressiona mais, muito mais do que no Egipto é a quantidade. Mais de 100 pirâmides, cerca de 20 das quais razoavelmente preservadas, até onde a vista consegue alcançar.
Deambular pela área das pirâmides de Meroé é um assombro total. Não nos conseguimos decidir para onde devemos ir. Sentimos que se formos pela esquerda vamos perder a beleza escondida do lado direito. Perdemos horas ali, calcorreando areias do deserto, subindo e descendo pedras milenares, entrando e saindo em pirâmides.
E contudo, num dos lugares mais extraordinários e incríveis que vimos no mundo, éramos poucos mais do que uma dezena de estrangeiros. E hoje, a par com o dia em que assistimos ao pôr-do-sol em Jebel Barkal, tínhamos estrangeiros por companhia.
À noite, quando deitamos a cabeça na travesseira empoeirada do quarto onde dormimos, sentimos claramente que o dia não tinha sido bom. O dia tinha sido… perfeito!
Leia aqui as crónicas diárias da nossa aventura a viajar no Sudão:
- DIA 1 – Welcome to Sudan!
- DIA 2 – Rumo ao norte – De Cartum a Ed Debba
- DIA 3 – VELHA DONGOLA, KERMAN e TOMBOS, um périplo pela história longínqua do Sudão
- DIA 4 – NÚBIA, a região que é senhora do deserto
- DIA 5 – As pirâmides do Império KUSH em KARIMA (Jebel Barkal, El Kurru e Nuri)
- DIA 6 – O milagre da Vida e as PIRÂMIDES DE MEROÉ
- DIA 7 – O esplendor dos faraós em Naqa e Musarawwat es Sufra e os Derviches africanos de Cartum
- DIA 8 – Os segredos escondidos de CARTUM e OMDURMAN
Muito legal! Não há voos do Brasil para Sudão (Cartum), sabe me dizer qual a melhor forma de fazer essa rota para chegar ao país?
A melhor rota é viajar por Addis Abeba. Veja aqui https://clk.tradedoubler.com/click?p=299452&a=3200478
Que boa leitura para finalizar o fia! Parabéns! 😊
Muito obrigada, Sandrina. 😀
Mas que grande relato! Beijinhos (aqui de Tenerife).
Muito obrigada, Filipe. Boa viagem por aí.
Me emocionou profundamente o relato com a família no deserto do Sudão. Eu posso imaginar a alegria deles quando receberem as fotografias. Beijinhos p vcs, aqui do Brasil.
Olá Márcia, foi um momento lindo mesmo. Infelizmente depois disto, o Sudão passou por uma crise política enorme e nós não conseguimos contactar com o Mohammed que lhe ia entregar as fotografias.Entretanto já recuperamos mas agora também não é altura para o fazer. Brevemente, as fotografias chegarão lá, acredito.
Emocionei-me ao ler!! Fabuloso!
Parabéns pela vossa persistência e também pela vossa resiliência, não deve ser fácil visitar este país apesar das maravilhas que têm o privilégio de ver!!!
Continuação de muitas aventuras!! Eu estou deste lado a deliciar-me com elas!!
Beijinhos
Ana Bela Saraiva
Ana, não é difícil viajar no Sudão. Tem os seus desafios mas o que se ganha é incomensuravelmente maior.
Um texto perfeito em dia perfeito.
Obrigada, Lusa. 😀
Sou neto de sudanês e sonho viver lá. Com seu relato, hoje tenho certeza de concretizar meu sonho. Mabruk. Parabéns. Shukran guidan. Muito obrigado pela matéria.
Muito obrigada. Nós adoramos o Sudão.
Caramba! Duro,mas ao mesmo tempo, espanto e fascínio! Parabéns pela crónica!
Obrigada, Rui. 😀