A Somalilândia é um país de facto mas, na realidade, não é um país. A Somalilândia é um Estado soberano, mas na realidade não é um país. A Somalilândia é uma nação, um Estado e até emite vistos e tem moeda e exército próprio, mas na realidade, não é um país. O que é então um país? O que é então a Somalilândia? A Somalilândia é um país que não existe! Decidimos então viajar para a Somalilândia, um Estado que não é país!
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GUIA DE VIAGEM DA GRANDE SOMÁLIA
QUANTOS PAÍSES EXISTEM NO MUNDO?
Quantos países existem no mundo? A pergunta é fácil, a resposta é muito mais difícil. A noção de país é algo muito recente e só começou a ser usado depois da II Guerra Mundial e da constituição da ONU. Até ali, o termo usado era Estado e designava os territórios que tinha “um governo, um povo e um território”. Eram Estados Soberanos porque a identidade cultural de um povo tinha um território e uma forma de governo soberano. Em 1948, 51 Estados soberanos criaram a ONU e passaram a integrar países nesta organização. O termo Estado aos poucos foi desaparecendo e dando lugar ao termo país. A ONU foi integrando cada vez mais países e, para se integrar a ONU os territórios passaram a necessitar de ter reconhecimento internacional. Isto criou a noção de país e indexou esta noção apenas aos Estados que eram integrados na ONU.
Neste momento a ONU tem 193 países membros, que são, na realidade, o número oficial de países do mundo. Contudo, há vários países que tentam um reconhecimento internacional e, por diversas razões, não o conseguem. Uma grande parte deles são inclusive Estados Soberanos, como é o caso da Palestina, Vaticano, Taiwan, Abcácia, Ossétia do Sul ou Somalilândia.
Isto significa que a sua independência desagrada os interesses de pelo menos 1/3 dos países da ONU, sendo que, o que são países de facto, tornam-se países invisíveis, países que não existem.
Para criar ainda mais confusão, a ONU permite a condição de país observador e integra a Palestina ou o Taiwan, sendo que isso causa algum desconforto nos interesses mundiais.
Para agravar a confusão, há imensas nações sem Estado no planeta, tal como o Curdistão, o País Basco ou a Escócia. Todos eles lutam pela independência mas contra gigantes mundiais, o que lhes dá poucas hipóteses de terem reconhecimento internacional.
A Somalilândia é um desses territórios, que sendo uma nação não muito diferente da Somália (já que partilham a mesma língua, cultura e religião) tem um território autónomo, um governo próprio e até moeda própria, exército e controle de fronteiras. É um país de facto, mas um país que não existe à escala internacional.
Para se entrar na Somalilândia é preciso tirar um visto. Depois de entrar neste país que não existe, é fácil perceber que aqui tudo é diferente da Somália.
O governo da Somália não controla o seu próprio país nem sequer a sua capital, Mogadiscio, e não há quaisquer serviços públicos em funcionamento no país. Na Somalilândia há escolaridade obrigatória e gratuita até ao 12 ano. Há hospitais e universidades. Há eleições a cada 5 anos. As fronteiras são patrulhadas pelo seu próprio exército e vive-se aqui em paz desde que declararam a sua independência em 1991.
Contudo, a Somalilândia não existe enquanto país, ainda que seja uma democracia. Este país que não existe é, para o mundo, parte integrante de um Estado falhado, a Somália, cujo governo permanece no poder há décadas, conduzindo o país para diversas guerras com territórios vizinhos, guerras civis e grupos jihadistas. Quando chegámos a Hargeisa, capital deste país que não existe, sentimo-nos como quem chega a Nova Iorque, deslumbrados com a diferença de quem vem de Mogadiscio e aterra num território com lei. Num país que não existe sentimos que ali o povo somali tem muito mais condições para existir.
NO MERCADO DE GADO DE HARGEISA NA SOMALILÂNDIA
A chamada Grande Somália, território ocupado pela actual Somália, Somalilândia, Djibouti e duas regiões que integram o Quénia e a Etiópia, é habitada por somalis, um dos primeiros povos do mundo a converter-se ao Islão e a partir do qual o Islamismo se alastrou pelo norte do continente africano.
A Somália e Somalilândia são territórios islâmicos conservadores e o uso do hijab, longo e a cobrir o corpo, é praticamente obrigatório. Num dos dias que saímos à rua, eu de leggings, saia e tshirt, um homem abordou o Rui e disse-lhe ao ouvido “a sua mulher não está vertida convenientemente”. Não foi indelicado ou agressivo, até foi meigo e atencioso, sendo bastante discreto. Resolvemos voltar ao hotel e eu mudei de roupa. A última coisa que quero fazer num país é mostrar desrespeito pelos seus povos. Esta situação permitiu-nos perceber que, embora não seja obrigatório o uso de hijab, o seu não uso é socialmente reprovável e até ofensivo. O islão em África é muito mais repressivo e castrador das liberdades individuais do que no Médio Oriente.
A cultura islâmica tem o comércio entranhado na pele e, às portas de Hargeisa existe um mercado de gado único no corno de África. É aqui que se reúnem os povos nómadas que são criadores de camelos e de ovelhas de cabeça preta, uma espécie autóctone na Somalilândia.
Estima-se que existam 14 milhões de camelos na Grande Somália, quase o mesmo número de habitantes. Os povos nómades criam-nos no deserto e trazem-nos ao mercado para serem vendidos. Um camelo pode custar entre 800€ e 1000€, mais se for uma fêmea. Contudo, as fêmeas não são exportadas, já que isso acabaria com o monopólio do comércio de camelos na Grande Somália. Grande parte dos camelos segue para a Península Arábica, especialmente para a Arábia Saudita, assim como as ovelhas de cabeça negra. Estas são vendidas aos milhares para serem sacrificadas durante o Hajj, em Meca, na Arábia Saudita.
O mercado de gado de Hargeisa é onde tudo começa, onde os comerciantes negoceiam o gado, o seu trajecto e o seu destino. Os gado parece ter vontade própria e recusa-se a mudar de dono e, ocasionalmente, até acontecem lutas entre camelos.
Num país que não existe, a exportação de animais é uma importante fonte de receita e os modos de vida locais são ainda muito tradicionais, dentro e fora do mercado.
NO DESERTO DA SOMALILÂNDIA
Depois de explorar o mercado de gado de Hargeisa rumámos a sul, o nosso destino era a cidade de Berbera, na costa, mas pelo caminho ainda iríamos ver o ex-libris da Somalilândia.
Descobertas apenas em 2002, as grutas de Laas Geel são incrivelmente extraordinárias. Muito pouco se sabe sobre elas mas estima-se que tenham cerca de 10 mil anos e tenham sido desenhadas por pastores nómadas somalis que traziam o gado a pastar nestes vales junto ao rio.
O rio nesta altura do ano está completamente seco mas a água está poucos metros abaixo do leito e pode ver-se algumas poças. Eram essas possas que atraíam os pastores e os seus camelos. Enquanto os camelos pastavam perto do leito, com mais vegetação e água, os pastores nómadas refugiavam-se nas grutas das colinas rochosas. Aí desenharam o seu gado, pessoas e até o seu modo de vida.
Ninguém sabe muito bem como nem porquê, mas a verdade é que as pinturas nestas grutas estão incrivelmente preservadas com cores vivas, bem definidas e muito visíveis. Sem sombra de dúvida um dos melhores lugares que já vimos no mundo.
Depois de regressar à estrada principal, paramos num boteco para almoçar, a comida típica dos nómades somalis e, mais uma vez, tememos pela nossa integridade intestinal. Felizmente, mais uma vez, correu bastante bem.
O nosso dia terminou em Berbera, uma antiga cidade costeira com arquitectura otomana e que nos conquistou imediatamente com os seus tons coloridos e com os sorrisos da sua gente. O pôr do sol foi na praia e com vistas sobre o Iémen.
DA SOMÁLIA INGLESA À SOMÁLIA FRANCESA
Era o nosso último dia na Somalilândia. Era hora de rumar ao Djibouti, o nosso último destino nesta epopeia pela Grande Somália.
No dia anterior partimos de manhã cedo de Berbera em direcção às montanhas de Sheihk, a antiga capital da colónia Britânica na Somália. Era dali que os ingleses governavam a colónia pois era mais fresco. Pouco resta para se ver neste local e, à parte da vegetação mais luxuriante, Sheihk parece o faroeste!
Depois de regressar a Berbera e Hargeisa, de dormir na capital da Somalilândia, a terra dos somali ingleses, era hora de rumar à Somália francesa, hoje de seu nome Djibouti e um país independente. A Somália enquanto país, que conhecemos era a Somália italiana. E foi assim que os povos europeus partiram um povo em diferentes países e criaram as bases para movimentos independentistas, os mesmos que hoje tentam impedir.
Decidimos voar no único dia em que não havia voos directos por isso tivemos de fazer escala em Adis Abeba, na Etiópia, antes de rumar ao Djibouti.
Quando chegámos já era noite cerrada mas as luzes e vida na cidade era intensa. Terminámos o dia dos namorados a jantar num restaurante iemenita. A Carla com esperanças de que uma viagem para lá esteja para breve. O Rui com esperança de que os ventos nos levem para outros rumos.
Amanhã, é dia de começar a explorar o Djibouti.