O prometido era devido, e a epopeia do Rally Mongol não terminaria sem termos a nossa Burrinha de volta a Portugal. Depois de expedida por comboio para a Estónia, e de barco para a Alemanha, a Burra esperava que a fossem buscar num dos maiores portos da Europa. Este fim de semana, tinha chegado a hora do Resgate da Burra.
Desta vez, os responsáveis pelo resgate da Burra seriam os Carapaus Carla, Rui e Agostinho. Não teríamos o mesmo ambiente sem os Carapaus José e Eduardo (que não puderam ir por razões profissionais), mas por outro lado tínhamos mais espaço para descansar dentro da Burra, se assim fosse necessário.
No avião para Hamburgo, o senhor que ia ao meu lado perguntou o que ia fazer à Alemanha, e quando eu respondi que ia buscar um carro, ele disse “Pois, quando são carros muito bons, ainda compensa vir buscá-los.”. Eu respondi “É mais ou menos isso… Neste caso caso tem um valor sentimental.” A verdade é que a Burra até pode não ser o melhor carro do mundo, mas levou-nos à Mongólia, em segurança e a tempo, tendo sido, sem dúvidas, o elemento mais importante do nosso Rally Mongol. Agora estava na hora de voltar a rolar na estrada, trazendo-nos até Portugal.
O Resgate da Burra, DIA 0 – Cheios de dúvidas
Voamos do Porto até Hamburgo, numa companhia low-cost. Se tudo corresse bem, não precisávamos de grande bagagem, pois a viagem seria apenas de alguns dias. Quando aterrámos, apanhámos quase logo um comboio para a estação central de Hamburgo, onde voltámos a apanhar outro comboio, desta vez em direcção a Bremerhaven, uma cidade costeira com um porto de grande movimento. Chegámos lá cerca das dez da noite. Estávamos ansiosos… Será que a Burra estaria mesmo lá? Quanto tempo demoraríamos a resgatá-la? Estaria em condições de andar?
Tínhamo-nos despedido dela há quase três meses e meio, e não sabíamos quase nada, aparte os e-mails recebidos da companhia responsável por trazê-la para a Europa. Tínhamos também o documento que confirmava a expedição para o porto de Bremerhaven, e o nome da companhia responsável, mas nada mais. Procurámos, em vão, na net por uma morada de um escritório, mas nada. Teríamos que, de manhã cedo, ir ao porto e procurar.
Para descomprimir, enfrentámos o frio e chuva de Bremerhaven e encontrámos um Irish Pub aberto. Lá dentro, conversámos com um grupo de jovens que nos ajudou a encontrar uma morada do escritório da companhia. Seria ali que encontraríamos a nossa Burra?
Veja como foi o dia em que deixamos a Burrinha para trás no lago Baikal.
O Resgate da Burra, DIA 1 – Finalmente, o reencontro com a Burra
No dia seguinte, acordámos cedo e arranjámos um táxi para nos levar ao porto. O taxista não falava inglês e não foi fácil explicar. No entanto, depois de lhe mostrarmos a morada, pôs-se a caminho. O porto ficava apenas a cerca de 4 km do local onde estávamos alojados, pois queríamos começar a viagem de regresso o mais cedo possível. Quando chegámos ao porto, o taxista deixou-nos na recepção. Ali, disseram-nos que o escritório era no edifício ao lado, e não é que a morada estava mesmo certa! Lá dentro, recebeu-nos um funcionário muito mal encarado, mas a verdade é que os papéis da Burra estavam lá! Esperámos no exterior apenas alguns minutos até que outro funcionário nos veio buscar para nos levar até ao interior do porto e à nossa Burra.
Depois de percorrermos umas boas centenas de metros dentro do porto, ao lado de todo o tipo de veículos (incluindo tanques e veículos de assalto) e de enormes cargueiros e porta-contentores, vimos a nossa Burra! Estávamos felizes pelo reencontro, mas rapidamente surgiram as más notícias…
Todo o material que tínhamos deixado dentro da Burra, incluindo dois pneus (novos), uma tenda, e grades tinham desaparecido. Alguém até desaparafusou e tinha roubado as barras do tejadilho! Mas ainda não era tudo… A Burra não pegava! Aparentemente, era a bateria que tinha dado as últimas… No entanto, com a ajuda de um funcionário, conseguimos que dessem à Burra a energia necessária para arrancar. O motor parecia estar em condições, verificámos o óleo, pneus e água, e a Burra estava pronta para rolar!
Parámos numa estação de serviço para meter gasolina, e o pior confirmou-se. A Burra não pegava novamente. Comprámos uns cabos de bateria e um camionista simpático ajudou-nos. Estávamos na estrada novamente! O objectivo do dia era chegar o mais longe possível, e as perspectivas eram boas pois os procedimentos no porto foram mais rápidos do que aquilo que esperávamos.
Rolámos para sul, em direcção ao Luxemburgo. O tempo estava muito frio, e a Burra reservou-nos outra surpresa: a “chofagem” só expulsava ar frio, e não desligava! Estávamos bem agasalhados, mas a viagem ia ser muito dura em (falta de) conforto bio-climático! A chuva fazia-se sentir intermitentemente, mas as auto-estradas alemãs permitiam-nos um bom progresso., ainda que com ocasional atraso devido a trânsito. À hora de almoço, tínhamos apetite, mas o medo da Burra não pegar fazia-nos duvidar… Arriscámos parar e parecia que a Burra tinha recuperado! Já pegava à primeira, sem ajuda externa.
Depois de almoço, o tempo começou a piorar. A chuva passou a ser intensa, assim como o frio que tentávamos suportar dentro da Burra. Para mais, a porta lateral teimava em abrir em movimento, quando fazíamos uma rotunda ou uma curva mais apertada. O frio era tanto que tivemos de tentar tapar as saídas da chofagem com lenços de papel, mas apenas com um sucesso parcial.
No norte da Europa, por esta altura, as horas de dia (não de sol) não são muitas… Eram quatro da tarde e começou a anoitecer. As condições climatéricas e do piso não permitiam grandes velocidades, por isso não progredíamos tanto quanto queríamos. No sul da Alemanha, tivemos problemas no percurso com uma estrada cortada, o que nos roubou tempo. A chuva caía forte e a visibilidade era reduzida. As estradas nacionais tinham também muito trânsito na véspera de fim de semana.
Estávamos perto da fronteira com o Luxemburgo, mas esta parecia nunca mais chegar. Cansados, resolvemos não esticar a viagem até à França, e dormir numa pequena localidade na Bélgica, encostada ao Luxemburgo. Ali reside a irmã (e sua família) do Agostinho, e fomos recebidos com muita simpatia e comida típica portuguesa! Uma sopinha quente, um arroz de feijão e alheira fizeram esquecer o frio suportado durante todo o dia! No entanto, a irmã do Agostinho ainda nos emprestou uma peça que iria ser fundamental para o dia seguinte: um cobertor!
No dia seguinte, o Resgate da Burra iria continuar. Parecia que estávamos de novo no Rally Mongol.
O Resgate da Burra, DIA 2 – Fugindo aos coletes amarelos
De manhã, as nossas expectativas não se confirmaram. No dia anterior, a Burra tinha arrancado sem ajuda durante a tarde, por isso estávamos optimistas, mas de manhã a bateria não dava sinais de mínima cooperação. Ainda bem que a rua era a descer, pois isso ajudou a que a Burra pegasse depois de nós empurrarmos. Temíamos que o problema fosse permanente. Era Sábado e se fôssemos à procura de um mecânico iríamos perder muito tempo. Tempo que era precioso. Mas se confiássemos que a Burra iria pegar sempre, nem que fosse de empurrão, poderíamos ficar apeados a meio da viagem. Resolvemos arriscar. Afinal, em movimento, a Burra parecia não ter problemas. A partir dali, cada vez que parámos para meter gasolina, ou para comermos, tínhamos de ter o cuidado de estacionar a Burra numa rampa que nos ajudasse.
Neste segundo dia, o plano era ambicioso. Queríamos atravessar França, chegando o mais perto possível da fronteira com Espanha. Eram muitos quilómetros, e além dos problemas com a bateria, era dia de protestos nacionais do “Movimento do Coletes Amarelos”. Temíamos que algumas estradas pudessem estar bloqueadas pelos manifestantes, e que isso nos pudesse atrasar consideravelmente. Tínhamos de evitar Paris e redondezas, mas tínhamos de optar pelas autoestradas, sempre que possível, para podermos ser mais rápidos.
Até Verdun, seguimos por estradas nacionais. As planícies daquela região não puderam deixar de impressionar, especialmente no ano centenário da I Guerra Mundial e dos seus milhões de mortos. Passámos por um cemitério com milhares de cruzes, e não conseguimos deixar de pensar no desperdício inútil de vidas humanas. A Carla recordou que o avô do seu pai foi uma dessas vítimas, jazendo agora algures neste solo francês.
À saída de Verdun íriamos entrar na autoestrada. Estávamos preocupados pela possibilidade de cortes e bloqueios. Quando avistamos a entrada, o nosso sangue gelou… Coletes amarelos ocupavam a estrada!
Quando nos aproximámos, vimos que afinal eram polícias! Mandaram-nos parar. O nosso aspecto não era grande coisa, e o veículo era fora do comum, por isso não foi de estranhar que nos mandassem encostar. No entanto, quando mandaram a Carla desligar o motor e sairmos todos do carro, a coisa mudou de figura. Ainda nos passou pela cabeça dizer que a Burra não pegava e pedir para deixar o motor ligado, mas o ar sério da polícia convenceu-nos. Mandaram-nos abrir a porta de trás.
Para quebrar o gelo, contámos a nossa aventura do Rally Mongol, e os polícias pareceram mais descontraídos, brincando com o facto da Burra ser uma Renault. Regressados à Burra, o que se esperava… Não pegava! Pedimos aos polícias que nos ajudassem. Estávamos em plena entrada de autoestrada parados e tínhamos de sair dali. Primeiro, ligaram uma Renault Kangoo deles à nossa, mas nada feito… A seguir, só restava empurrar… Três polícias franceses empurraram a Burra e ela arrancou! Estávamos de novo em movimento e afinal foram estes coletes amarelos que nos salvaram!
O tempo começou a melhorar e a temperatura começou gradualmente a ficar mais amena, ou pelo menos não tão baixa. Por breves minutos, até vimos o sol! Mas foi sol de pouca dura… Só parávamos para a Burra abastecer, ou nós comermos. E cada vez que parávamos, a Carla e o Rui empurravam e o Agostinho punha a Burra a trabalhar. As estações de serviço já não eram escolhidas em função do preço dos combustíveis ou dos restaurantes, mas em função da existência, ou não, de rampas com inclinação. Felizmente, não era preciso correr muito para que a Burra pegasse.
Para o final do dia, a Burra começou a mostrar sinais de cansaço. Em ponto morto parecia ter uma aceleração demasiado forte, fora do normal, mas em movimento tudo parecia bem. A noite voltou outra vez cedo, mas com a descida em latitude já se conseguiam notar diferenças em relação aos dias anteriores. Com a noite, vinham também o cansaço acumulado, e a desmotivação. Resolvemos guiar em turnos, duas pessoas por dia, descansando a terceira.
Finalmente ultrapassado Bordéus, a fronteira de Espanha aproximava-se. Tínhamos conseguido atravessar França inteira, e não tivemos problemas de maior. Mas a hora era já adiantada, e consultados os preços de hotéis, resolvemos ficar alojados nos arredores de Bayonne. O hotel tinha check-in automático, e um parque de estacionamento com um declive conveniente. Tínhamos comprado uma garrafa de vinho francês, e perto do hotel encontrámos uma roulotte a vender pizzas. Providencial! Assim acabámos um dia muito cansativo, para nós e para a Burra, mas em que acabámos por percorrer mais de 1000km, o que nos poderia dar a chance de chegar a Portugal já no dia seguinte.
O Resgate da Burra, DIA 3 – A reunião de todos os Carapaus
De manhã, a Burra estava mais temperamental do que nos dias anteriores. À primeira tentativa, nada. À segunda, pegou, mas foi-se a baixo quando ligámos os médios. À terceira, finalmente ficou pronta a rolar. Mas cada vez que empurrávamos para baixo, tínhamos de empurrar para cima. Um bom exercício matinal! O resgate da Burra não estava a ser fácil.
Rapidamente entrámos em Espanha, e a Burra parecia recuperada do cansaço do dia anterior. O ritmo do motor já nos parecia normal, mas a bateria continuava sem dar sinais de vida. O depósito estava em baixo e tivemos de parar numa estação plana, sem descidas. Depois de abastecermos a Burra e tomarmos o pequeno-almoço, ainda tentámos obter ajuda para os cabos, mas ninguém aparecia. Um camionista aproximou-se e disse para tentarmos empurrar. E funcionou!
Durante toda a viagem, tentámos recriar um pouco o espírito do Rally Mongol. Conversámos muito, brincámos, e lembrávamo-nos dos Carapaus que não tinham vindo. O objectivo do dia era chegar a Portugal, e terminar a viagem no mesmo local onde o nosso Rally Mongol começou no passado Julho, ou seja, em casa do Carapau José. Naquele dia, os Carapaus Agostinho, José e Eduardo tinham partido cheios de expectativas para uma grande viagem, e agora chegaríamos novamente a Portugal, partilhando histórias e emoções com aqueles que não tinham podido ir.
Ao contrário de França, onde as portagens proibitivas nos castigaram sem descanso, em Espanha o percurso nas autoestradas foi quase grátis. Aos poucos e poucos Portugal foi ficando mais perto, e sentíamos que estávamos cada vez mais perto de casa. A Burra foi-se portando bem, e o tempo da Península Ibérica não desiludiu, sendo que o sol regressou finalmente ao nosso horizonte.
Almoçámos cerca das três da tarde já encostados à fronteira portuguesa, com Chaves do outro lado. Com uma sopa-feijoada e vitela estufada, e finalmente em solo português, o nosso ânimo já era outro. O resgate da Burra parecia estar a ser bem sucedido. Iríamos chegar mais cedo do que as nossas melhores expectativas e iríamos reencontrar os nossos companheiros de Rally Mongol.
A noite caía, mas avançávamos rapidamente rumo ao nosso objectivo. Finalmente, depois de passados Guimarães e Braga, chegámos a casa do Carapau José. A festa foi muita e a Burra foi a estrela do momento. Os Carapaus José e Eduardo não escondiam a alegria por reencontrarem a Burra e não conseguiram deixar de dar uma voltinha no lugar do condutor.
Agora sim, depois do Resgate da Burra bem-sucedido, o Rally Mongol tinha chegado ao fim. Quanto ao futuro, a Burra continuará por cá e, quem sabe, continuará as suas aventuras estrada fora.
Podem ver os vídeos da nossa aventura aqui no youtube.