– 10 000 kwachas para o transporte! – Gritavam os homens na margem do lago Malawi. – O porto ruiu, o ferry não chega até aqui. Vão ter que apanhar um barco para entrar no ferry.
Apesar de estarmos com pouca vontade de pagar esta quantia de dinheiro, a verdade é que o porto estava completamente decrépito e abatido, do qual apenas sobravam pilares ao alto. Era evidente que estava inutilizado. Parámos um bocado para pensar e, na falta de alternativas, teríamos mesmo que usar o barco. O ferry estava a cerca de 500 metros da margem e era impossível alcançá-lo.
A chegada do Ilala Ferry a Nkhota Khota acontece duas vezes por semana, uma das quais em direcção a norte, a Nkhata Bay. O ferry parte do porto às 7h da manhã e nós chegámos ao porto meia hora antes. A população já se acumulava na margem do lago, a maioria sentada na praia, cheia de sacos e cestos. Os barcos dos pescadores saiam para a faina. Todo o quadro era embelezado por um cenário de nascer do sol maravilhoso, provavelmente um dos mais belos e enigmáticos de África.
Na impossibilidade do Ilala Ferry chegar à costa, um barco pequeno era içado e vinha buscar os passageiros. Mas o barco não vinha mesmo até à margem pelo que era necessário entrar nas águas do lago e caminhar cerca de 100 metros para lá chegar. A água passava da altura da cintura pelo que ia ser complicado fazermos esta operação com as mochilas. Optámos por pagar o barco aos rapazes. Tomada a decisão, estava na hora de negociar o preço. A quantia que nos pediam era exorbitante. Conseguimos ficar pelos 5000 kwachas pelos dois. Continuava a ser um preço elevado, tendo em atenção que pagamos 700 kwachas/pessoa pelo táxi-bicicleta para ali chegar (ver post anterior).
Um rapaz baixou-se, fazendo sinal para subirmos para as suas costas. A ideia era levar-nos às costas o metro que nos separava do barco pequeno. Olhámos um para o outro e dissemos logo que não. Íamos tirar as botas, entrar na água e percorrer aquela distância na água. O rapaz olhou para nós com um ar incrédulo mas assentiu. Entrámos no barco, limpámos os pés e voltamos a calçar-nos. Algumas dezenas de metros à frente, mudámos para o barco que fazia a recolha dos passageiros e daí fomos transportados para o ferry. Este transporte continuou a operar por cerca de uma hora, enchendo-se o barco aos poucos.
Quando entrámos, o Ilala Ferry já estava cheio de mercadorias e pessoas, mas a carga foi aumentando à medida que o tempo passava. Sentámo-nos no topo, perto da cabine de comando, apreciando o ritmo de vida no lago. Não havia brancos ali. Apenas negros, a maioria jovens, homens e mulheres, que se sentavam nas canoas de madeira e sacos atolados por todo o lado.
Quando o Ilala Ferry iniciou a sua marcha já passava das oito horas da manhã. Tivemos que descer para nos sentar no meio da multidão e da confusão. À medida que o ferry progredia, a água começava a entrar para dentro e a molhar-nos. Como tínhamos feito uma reserva pela internet em primeira classe, resolvemos tratar de arranjar os nossos lugares. O Rui entrou dentro do compartimento fechado. Haviam duas classes. Na segunda classe viajavam vários negros, no chão e sentados nas cadeiras. Num canto e apenas separados por “categoria”, já que o espaço era semelhante e as cadeiras exactamente iguais, viajavam apenas brancos. Era a primeira classe. Reclamámos as nossas reservas. O Rui veio chamar-me cá fora.
– Eu sei que estás enjoada de balançar aqui mas lá dentro vai ser pior. Há pessoas espalhadas no chão por todo o lado e há gente a vomitar. – Disse.
Eu sabia que a viagem não ia ser fácil. Sabia que enjoava a andar de barco. Mas também já sabia isso tudo antes de entrar no Ilala Ferry e optei por fazê-lo. Deixámos as mochilas no convés e sentámo-nos no banco disponível. Mal me arranjei para dormir, duas mulheres com quatro crianças colocaram-se encostadas às minhas pernas, arranjando posição para dormir. Nas duas horas que se seguiram dormi ali sentada, entre vómitos das crianças e gemidos tímidos das senhoras.
Viajavam connosco alguns brancos, um espanhol, um casal do Reino Unido e outro casal alemão e seis miúdas voluntárias irlandesas. Tinham todos entrado em Monkey Bay, o principal destino turístico no Lago Malawi.
O tempo passou e o barco atracou. Estávamos na ilha Linkoma. Eram 10h da manhã. Supostamente só chegaríamos aqui às 14h. Ficámos intrigados. Depois de conversar com a tripulação descobrimos que o ferry onde viajávamos não era o Ilala ferry. Esse tinha avariado e fora substituído à última da hora por um ferry rápido. Eram mesmo boas notícias porque iríamos chegar mais cedo a Nkhata Bay (a hora prevista de chegada do Ilala era à meia-noite). No meio desta conversa, descobrimos que este ferry deveria ter partido de Nkhota Khota às 3h da manhã mas como naquela noite o lago esteve muito agitado, o capitão decidiu lançar a âncora e esperar. Descobrimos aí que foi uma sorte termos conseguido apanhar o ferry!
No Ilala Ferry teríamos cerca de três horas para explorar a ilha Linkoma. Neste ferry, a paragem ia ser mais rápida. Teríamos apenas uma hora. Optámos por não sair e ficar apenas no ferry a testemunhar e viver o momento. A chegada do Ilala Ferry é extremamente importante. É a única forma de aceder à ilha e é a partir do ferry que toda a ilha é abastecida. O descarregar e carregar de caixas e sacos era impressionante. Vários barcos de pescadores juntavam-se ao ferry para fazer entrar e sair mercadoria.
Entravam e saíam ali alguns turistas. Eram poucos mas a ilha era paradisíaca. As águas eram límpidas e transparentes e a praia bonita. Apesar de não termos conhecido a ilha, ficámos encantados com aquilo que vimos.
Pouco depois a viagem pelo lago era retomada. O próximo destino seria a ilha de Chizumulu, mais uma ilha no lago Malawi. O trajecto entre as duas ilhas foi duro. O lago estava bastante agitado devido ao vento e as ondas faziam lembrar o mar, tal a agitação das águas. Comecei a ficar enjoada e decidi deitar-me no banco de olhos fechados. O cheiro nauseabundo dos vómitos naquele espaço fechado começou a incomodar-me. Felizmente a viagem foi rápida e em cerca de uma hora estávamos na ilha Chizumulu. Quando o barco parou, levantei-me imediatamente, tentando sair para o exterior de forma a poder respirar ar puro. Pelo caminho calquei vomitado. Que nojo!
Cá fora a paisagem era deslumbrante. Moçambique estava logo ali ao lado. Viam-se os pescadores moçambicanos a pescar no lago, que ali se chama lago Niassa. A ilha é mais pequena do que a anterior mas parece ainda mais idílica. Há um hotel de madeira tradicional, construído sobre o lago que nos encantou. Deve ser o único na ilha. As águas eram ainda mais transparentes do que em Linkoma e havia bastante menos pessoas. O ritual de carga e descarga do ferry foi muito mais rápido e, ao contrário das duas horas previstas de paragem, ficámos menos de uma hora. Não deu para sair.
O ferry seguiu viagem para Nkhata Bay, a nossa paragem final, onde chegámos por volta das 19h. Ficámos radiantes quando o Ilala Ferry “atracou”. Íamos ter tempo para jantar. O ferry deveria ter atracado no porto mas este estava completamente destruído, à semelhança de todos aqueles por onde passámos, pelo que parou a uns meros dois metros da costa. Tivemos que esperar que o ferry fosse descarregado, com sacos, bidões, cestos, canoas e caixas a circularem do ferry para um barco pequeno e por sua vez para o porto. Esperámos quase duas horas para desembarcar. Também tivemos que passar para o barco pequeno e só depois para o porto. No porto esperava-nos James, um rapaz do Mayokas Village, o local onde tínhamos reserva, para nos levar de boleia. Saímos do barco e juntámo-nos aos restantes estrangeiros que iam para o mesmo local. O Mayokas Village é uma espécie de instituição aqui no lago Malawi. Fomos todos para dentro de uma combi, como se fossemos sardinhas em lata, e as mochilas atoladas na bagageira. Devíamos estar mais de 12 pessoas numa carrinha com lotação para 7. Mal nos conseguíamos mexer. Depois de todos estarem bem amassados e acondicionados, era hora de nos lançarmos à estrada. Felizmente a distância era curta e a viagem não demorou mais do que cinco minutos. Pelo caminho, abriu-se a bagageira e várias mochilas espalharam-se pela estrada. O Rui saiu a correr e recolheu a sua mochila, assim como várias mochilas das raparigas irlandesas. A nossa chegada a Nkhata Bay estava a ser uma aventura.
Instalados no Mayokas, aproveitámos que o bar ainda estava aberto e convencemos a rapariga a servir-nos qualquer coisa para comer. As hipóteses eram muito reduzidas pelo que tivemos que comer “burritos mexicanos“. Depois de esperar mais de duas horas pela comida, descobrimos que a empregada só tinha um disponível. A muito custo, lá nos arranjou um hambúrguer, que foi bem mais rápido e estava muito melhor do que o pedido original. A nossa chegada a Nkhata Bay tinha sido uma aventura, mas as coisas não iam ficar por aí, pois nos próximos dias ainda haveria lugar para mais epopeias no lago Malawi!
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