O auto-denominado “Estado Islâmico”, conhecido como “Estado Islâmico do Iraque e da Síria” (ISIS) ou “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” (ISIL) e, em árabe, “Ad-Dawlat Islamiyat fi Iraq wa al-Sham” (Dāʿish ou DAESH), teve, e continua a ter, um papel fundamental na história política e militar recente do Médio Oriente, rivalizando com o regime talibã no Afeganistão como expoente máximo (até agora) do fundamentalismo islâmico. O aparecimento do Estado Islâmico nos países em cujo território cresceu, Síria e Iraque, alimentando-se dos conflitos armados já então a decorrer nesses países, e depois agudizando-os, levou a profundas mudanças políticas e militares, com consequências que ainda hoje se fazem sentir. Este artigo é sobre o Estado Islâmico, a forma como o Estado Islâmico apareceu, cresceu e como o Estado Islâmico se propagou no Iraque e na Síria. Para além disso, vamos abordar a queda do Estado Islâmico e a forma como as batalhas contra o Estado islâmico definem ainda hoje estes países.
Perceber o Estado Islâmico não é fácil porque tudo o que envolve o Estado Islâmico é complexo e cheio de nuances e interferências e interesses. O Estado Islâmico tem interferências e contributos nacionais e internacionais e isso acarreta muita complexidade aquilo que o Estado Islâmico era, mas mais do que isso, ao que o Estado Islâmico se tornou e ao que possa um dia voltar a ser. É sobre esta viagem na complexidade do Estado Islâmico que o convidamos a embarcar.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM – Nós estivemos na Síria 5 meses antes da guerra civil começar e do aparecimento do Estado Islâmico. Conhecemos um país que, apesar de viver sob um regime não democrático (à semelhança de quase todos os países do Médio Oriente), tinha um grau de desenvolvimento considerável, com todas as infraestruturas a funcionar, um Estado em grande parte laico, com as mulheres a ter um papel muito mais igualitário do que nos seus países vizinhos, e com uma população super simpática e hospitaleira. A guerra na Síria e o avanço do Estado Islâmico, e as suas desastrosas consequências para o país e, principalmente, as suas pessoas, foram para nós um grande choque.
CONTEÚDOS DO ARTIGO
ESTADO ISLÂMICO NO IRAQUE E NA SÍRIA
Em particular, é difícil exagerar a influência que o Estado Islâmico teve na história recente do Iraque, levando a mais uma guerra, uma verdadeira guerra civil iraquiana que decorreu entre 2013 e 2017, num território já em si fustigado por décadas de conflitos armados, cujas consequências se fazem sentir no presente e se farão sentir no futuro político, social e económico do Iraque. Este Estado Islâmico marcou e marcará profundamente o Iraque.
Claro que várias perguntas surgem imediatamente: “O que foi realmente o Estado Islâmico? De onde surgiu o Estado Islâmico? Porquê? Quem eram os homens e mulheres do Estado Islâmico? Quem apoiou e quem combateu pelo Estado Islâmico?” Neste artigo, que é também uma segunda parte do nosso artigo sobre a história da Guerra do Iraque (2003-2011), iremos responder a estas perguntas sobre o Estado Islâmico, mas também mostrar como viajar no Iraque, e visitar alguns dos locais mais directamente relacionados com a história do Estado Islâmico no Iraque, pode ser uma excelente forma de aprender sobre este capítulo recente da história do Médio Oriente e perceber o impacto profundo que o Estado Islâmico teve nas populações locais, para além de se poder ter um vislumbre sobre o futuro da região.
1. Visitar o Iraque e conhecer a sua história, para além do legado do Estado Islâmico
Hoje, em 2022, alguns anos após o fim a guerra civil iraquiana e a derrota do Estado Islâmico no território do Iraque, o país tem agora, finalmente, uma grande oportunidade de virar uma nova página da história, rumo a um futuro melhor, algo pelo qual o seu povo anseia há muito. Surpreendentemente, o turismo no Iraque pode ter também a sua quota parte na normalização da situação após o Estado Islâmico e na construção de um país melhor finda a guerra civil.
O território do Iraque corresponde à antiga Mesopotâmia e são inúmeros os locais arqueológicos relacionados com as civilizações da Suméria, Assíria, Babilónia e Pérsia, já para não falar na rica história e cultura islâmica do país. O Iraque é assim um país com um potencial turístico enorme e visitar e conhecer o Iraque pode ser uma maneira de contribuir para um futuro melhor para as suas gentes, tão necessitadas de paz e desenvolvimento após décadas de guerra e a presença do Estado Islâmico.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Nós viajámos no Iraque em Dezembro de 2021 e Janeiro de 2022, e é com base no conhecimento dos lugares e pessoas no terreno que damos o nosso testemunho sobre a história recente deste país martirizado. Consulte o nosso artigo sobre viajar no Iraque.
2. Os antecedentes do Estado Islâmico
Um olhar mais desatento pode levar a pensar que o Estado Islâmico terá nascido aparentemente do nada, da mesma forma que terá o Estado Islâmico terá desaparecido alguns anos depois. A verdade é que o Estado Islâmico, como todas as organizações políticas e territoriais, é fruto do seu tempo, e de circunstâncias sociais e políticas muito especiais.
2.1. A afirmação ideológica e política do Islão perante o Ocidente
O facto de muitos países árabes serem dos mais ricos do mundo em termos de recursos naturais (por exemplo, petrolíferos) levou a que muitos deles se aproximassem do modo de vida ocidental, e a uma interferência, e mesmo presença física, de potências ocidentais no Médio Oriente, criando um sentimento de ressentimento por parte de facções mais conservadoras.
Assim, o conflito ideológico entre o Islão conservador, baseado nas escrituras do Profeta Maomé, e a modernidade, e o confronto político e militar entre os países árabes e as potência ocidentais, constituem, em traços gerais, o embrião do qual nascem todos os movimentos considerados “radicais” ou “fundamentalistas”, tal como o Estado Islâmico, alicerçados, por um lado, num regresso a um Islão mais puro que dite as regras no mundo moderno, e, por outro, na afirmação política das nações islâmicas, algo que lhes foi negado no contexto do pós Primeira e Segunda Guerras Mundiais.
Em particular, o acordo de Sykes-Picot foi o início do grande ressentimento dos líderes do Médio Oriente face às potências ocidentais. No seguimento da derrota e colapso do Império Otomano, França e Alemanha assinam em 1916, em segredo (mais tarde tornado público pelos bolcheviques) e com o consentimento do Império Russo e o Reino da Itália, um acordo em que dividiam o Médio Oriente em duas partes, tornando-as esferas de influências das duas potências europeias e negando a afirmação política e independência de países árabes, mas também dos curdos, que tinha sido prometida em particular pelos ingleses. Os militantes do Estado Islâmico encaravam a fronteira estabelecida pelo acordo Sykes-Picot como uma facada no Médio Oriente.
O QUE VIMOS NAS NOSSAS VIAGENS RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Nós viajámos por muitos dos países do Médio Oriente, em diferentes ocasiões desde 2010 até hoje, e demo-nos conta que os movimentos radicais e o conservadorismo islâmico são presenças constantes em vários países da região, principalmente nos chamados países do Golfo Pérsico e no Egipto, mas não tanto na Síria e Iraque, precisamente os que foram considerados pelos EUA como fazendo parte do “Eixo do Mal”.
2.2. Dos anos 70 ao século XXI
Foi a partir dos anos 70 do século passado que se começaram a desenrolar os acontecimentos que iriam desembocar no Estado Islâmico e no que estará para vir no futuro. A crise petrolífera de 1973, a Revolução Iraniana de 1979, que levou à criação de uma República Islâmica, e a invasão do Afeganistão pela URSS, em 1979, são momentos-chave na relação Islão-Ocidente, sendo que esta última levou, por exemplo, ao financiamento por parte do Ocidente de mujahideens, “guerreiros” sagrados” que defendiam a guerra santa, “jihad”, do Islão perante os “infiéis” soviéticos.
Os mesmos homens que foram financiados pelo Ocidente no Afeganistão constituiriam o regime talibã, e levariam à fundação de grupos extremistas como, por exemplo, a Al-Qaeda, a quem é atribuída a responsabilidade pelos ataques aos EUA em 11 de Setembro de 2001, e sem a qual o Estado Islâmico não teria sido possível. Mas foi já nos últimos 20 anos que se deram três grandes acontecimentos que são fulcrais na criação das condições favoráveis ao aparecimento do Estado Islâmico, a saber, a Guerra do Iraque (2003-2011), a Primavera Árabe (2010-2012) e a Guerra Civil da Síria (2011-presente).
2.3. A Guerra do Iraque e o aparecimento do Estado Islâmico
A guerra do Iraque foi um conflito que durou desde 2003 a 2011 e que moldou a história recente do país. Saddam Hussein tinha governado o Iraque com mão de ferro desde 1979, tinha conduzido o país à Guerra do Iraque e Irão, à ocupação do Kuwait e à guerra do Golfo, e tinha sobrevivido a tudo isso com base na repressão violenta de todos os movimentos políticos e religiosos que lhe pudessem fazer frente internamente. Após os ataques de 11 de Setembro de 2001, os EUA iniciaram uma “Guerra Global ao Terror“, invadindo o Afeganistão (onde o regime talibã albergava Bin Laden e a Al-Qaeda) e, ano e meio mais tarde, invadindo o Iraque, com base em alegações (que hoje sabemos terem sido fabricadas) sobre “armas de destruição maciça” e sobre a ligação de Saddam Hussein ao terrorismo internacional (que nunca existiu).
O primeiro objectivo da invasão dos EUA, a queda do regime de Saddam Hussein, foi rapidamente conseguido, mas a estabilização política, social e religiosa do Iraque era algo muito mais difícil de concretizar, já para não falar na tão afamada “democracia”. Seguir-se-iam oito longos anos de resistência armada (insurgência) à ocupação americana e o aparecimento de movimentos radicais islâmicos no território iraquiano, sob a forma de diversos grupos armados, considerados “grupos terroristas”, entre eles o Estado Islâmico, algo inédito até então no Iraque, mergulhando o país em violência e caos e dando continuidade a mais “guerras no Iraque”, mesmo após a saída da maior parte das tropas americanas em 2011.
2.4. A Primavera (e o Inverno) Árabe levaria ao Estado Islâmico
A chamada “Primavera Árabe” foi uma onda de manifestações e protestos que ocorreram no Médio Oriente e no Norte da África, começando na Tunísia, em Dezembro de 2010. Dali, os protestos espalharam-se para a Líbia, Egipto, Iémen, Síria e Bahrain, entre outros países da região. A denominação “Primavera” baseou-se na “Primavera de Praga” e nas revoluções europeias de 1848, e baseava-se na ideia de que nestes países estaria a florescer a ideia da democracia, sendo que os protestos levariam a mudanças de regime no sentido de aproximação a um modelo democrático liberal.
A verdade é que alguns ditadores de longa data foram efectivamente depostos pelos movimento populares, tal como os casos do presidente Zine al-Abidine Ben Ali, na Tunísia, e do presidente Hosni Mubarak, no Egipto, ou como resultado de conflito armado entre governo e “rebeldes”, tal como do presidente Muammar Gaddafi, no caso da Líbia, onde a ajuda da intervenção militar de uma coligação internacional liderada pela NATO foi essencial para a queda do regime.
O QUE VIMOS NAS NOSSAS VIAGENS RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Nós viajámos na Tunísia em Dezembro de 2016 e Janeiro de 2017 e pudemos testemunhar a luta por um regime democrático, por um lado, mas também o conservadorismo presente em partes do país e da sua população, como por exemplo na cidade de Kairouan, onde o Estado Islâmico foi buscar muitos combatentes e apoio.
No entanto, na maioria dos outros países os protestos da Primavera Árabe foram reprimidos com violência, em alguns casos degenerando em conflitos armados generalizados. Mesmo nos casos com mais “sucesso”, o cenário político e social após a mudança de regime baseava-se num “vácuo” de poder e ordem, levando a grandes instabilidades nacionais e regionais. Para além disso, em vários países, as eleições livres levaram ao poder partidos fundamentalistas islâmicos, como a “Irmandade Muçulmana” no Egipto. O Estado Islâmico começava a estabelecer uma base mundial.
Nos casos mais graves, as medidas duras adoptadas pelas autoridades, a interferência no terreno por parte de potências externas e a formação de grupos e milícias armadas levaram a verdadeiras guerras civis, sendo de destacar as guerras na Síria e Iémen, ambas ainda a decorrer, e na Líbia, oficialmente terminada, mas com o país mergulhado num caos político e económico, e efectivamente governado por “senhores da guerra”, alguns deles com ligações ao Estado Islâmico.
Assim, as esperanças (ingénuas ou não) de que a “Primavera Árabe” acabasse com a corrupção e ditadura, levando à democracia e maior participação política das populações, não se concretizou (com excepção da Tunísia, ainda que a braços com uma profunda crise política e económica), dando origem a movimentos contra-revolucionários, sustentados por potências regionais (como a Arábia Saudita) e internacionais (como os EUA e Rússia), contribuindo de uma forma fulcral para uma maior desestabilização do Médio Oriente, de tal forma que esta situação é por alguns designada como “Inverno Árabe”, por oposição, claro, à “Primavera Árabe”.
2.5. A Guerra Civil da Síria e o Estado Islâmico
A Síria é o caso paradigmático de um regime autoritário que respondeu com violência extrema aos protestos da “Primavera Árabe” e de como as interferências externas de potências externas (que defendem os seus próprios interesses) podem ser nefastas e destrutivas para um país. Passados 11 anos de guerra civil, iniciada em Março de 2011, o regime do presidente Bashar al-Assad continua no poder, mas a Síria já não é o país que existia antes de 2011. A guerra agudizou-se e internacionalizou-se em 2014 com o Estado Islâmico a ocupar áreas significativas do território sírio, levando, primeiro, ao envolvimento dos EUA e, depois, ao da Rússia.
O regime sírio conta com o apoio de países como a Rússia e Irão, e de grupos como o Hezbollah, enquanto que a oposição (dividida em várias facções) conta com o apoio de países como os EUA, Turquia e Israel, e de grupos como os curdos e vários grupos sunitas (como o “Free Syrian Army”) e radicais (como a “Frente Al-Nusra” ou “Tahrir al-Sham”). Estes apoios não se limitaram a ajudas militares ou económicas, mas também a um envolvimento directo no terreno, com tropas, grupos militares ou paramilitares, e campanhas aéreas, especialmente contra o Estado Islâmico, mas também contra alvos do regime e da oposição.
Como resultado desta situação complexa e violenta no terreno, para além da destruição patrimonial e humana de grandes centros urbanos, como a cidade histórica de Aleppo, e da destruição generalizada das infraestruturas do país, a verdade é que os próprios limites da Síria já não existem como eram antes. Hoje, o regime sírio domina cerca de dois terços do território, mas grandes fatias da Síria são, agora, efectivamente controladas por diferentes forças militares e políticas de variadas influências.
Parte do Norte e Leste da Síria é, na prática mas não oficialmente, uma região autónoma controlada e administrada pelas “Forças Democráticas da Síria” (SDF), forças curdas com apoio dos EUA e ligações ao PKK, um partido nacionalista curdo. Partes do noroeste da Síria estão ocupadas por forças turcas, que combatem as SDF (e o regime sírio), e partes do sul da Síria (nas fronteiras com a Jordânia e Iraque) estão ocupadas por forças de oposição síria (“New Syrian Army” ou agora “Maghaweir al-Thowra”, Comandos da Revolução) apoiadas no terreno por forças dos EUA.
Todas estas facções, sem excepção, têm sido acusadas de atrocidades e crimes de guerra por organizações internacionais, que estimam que a guerra civil da Síria tenha tido, até agora, cerca de 600.000 vítimas, e dado origem a mais de 6 milhões de deslocados (internamente) e outros 6 milhões de refugiados (internacionalmente). O Estado Islâmico faz parte de um cenário muito mais negro do que ele próprio.
3. As origens e ideologia do Estado Islâmico
A 29 de Junho de 2014, Abu Bakr al-Baghdadi, o então líder do Estado Islâmico proclamou, na mesquita Al-Nuri em Mossul, Iraque, um novo califado islâmico em territórios outrora pertencentes à Síria e Iraque, com capital na cidade síria de Raqqa. O Estado Islâmico era visto como uma continuação dos califados islâmicos que governaram vastos territórios, desde a Ásia Central à Península Ibérica, com capitais como Damasco, Bagdad e Cairo, entre os séculos VII e XVI.
O Estado Islâmico apresentava-se como um novo expoente do radicalismo islâmico, assumindo-se como descendente dos primeiros seguidores do Profeta Maomé, atacando tanto o regime sírio, como a sua oposição, mas também o regime iraquiano. Nesse momento, todo o mundo acordou para a ameaça do Estado Islâmico. Mas quais foram as raízes do Estado Islâmico e como se chegou a esse ponto? O que é ou era o Estado Islâmico?
3.1. Al-Qaeda, Bin Laden e Al-Zarkawi
A história do Estado Islâmico (Daesh) (embora nessa altura ainda não se chamasse assim) começou com íntimas ligações à Al-Qaeda, uma organização militante sunita extremista, fundada por Osama Bin Laden e outros, outrora financiados pelos EUA para combater a invasão russa do Afeganistão. Após a retirada russa e o colapso da URSS, os ideólogos da Al-Qaeda viam a sua missão como uma jihad (“guerra santa”), e os EUA começavam a ver o “feitiço a virar-se contra o feiticeiro”. Os ataques às embaixadas dos EUA em Dar es-Salaam, na Tanzânia, e em Nairobi, no Quénia, os ataques do 11 de Setembro e o ataque bombista em Bali, na Indonésia, de 2002, foram atribuídos à Al-Qaeda.
Abu Musab al-Zarqawi, um jordano que tinha fundado um grupo jihadista (“Jama’at al-Tawhid wal-Jihad”) em 1999, tinha-se baseado num campo de treinos no Afeganistão, onde terá conhecido Bin Laden e terá sido por este financiado. Viria a ser uma figura importante no Estado Islâmico. Este grupo, como outros, incluíam-se num movimento de ideologia jihadista salafista, baseado nos escritos de um teólogo egípcio da Irmandade Muçulmana dos anos 60, que defendem o regresso à pureza do islão inicial (Salaf al-Salih, as três primeiras gerações após o Profeta Maomé), a criação de um califado global, e encaram tanto sunitas como xiitas (mas principalmente estes últimos) como infiéis e merecedores da morte. É considerado o pai do Estado Islâmico.
3.2. A Al-Qaeda no Iraque, a semente do Estado Islâmico
A segunda fase do que viria a ser o Estado Islâmico começou com a invasão americana do Afeganistão e do Iraque. Para os militantes jihadistas, era claro que os americanos iriam invadir o Iraque mais cedo ou mais tarde a seguir ao Afeganistão, por isso a resistência armada começou a ser preparada com antecedência, com a criação de células adormecidas por todo o país, mas em especial no chamado “Triângulo Sunita”. Al-Zarqawi infiltrou-se no Iraque, vindo do Irão, e juntamente com muitos outros grupos jihadistas (como o “Ansar al-Islam”) tomaram para si a insurgência contra a ocupação americana, tendo como alvos as forças militares americanas e iraquianas, mas também civis (especialmente muçulmanos xiitas), instituições internacionais e embaixadas, e colaboradores estrangeiros.
Em 2004, al-Zarkawi prestou fidelidade à Al-Qaeda, formando um novo grupo chamado “Tanzim Qaidat al-Jihad fi Bilad al-Rafidayn” (Organização de Base da Jihad na Mesopotâmia), também conhecido como “Al-Qaeda no Iraque” (AQI). Era o início do Estado Islâmico. Pela primeira vez, a Al-Qaeda estava presente no território iraquiano, graças à invasão americana, e não o contrário como era defendido pelos líderes políticos e militares americanos como uma das justificações da invasão.
A situação no Iraque nos anos a seguir à invasão dos EUA foi caótica. Um dos factores que contribuía para o caos era a violência sectária entre sunitas e xiitas. Em particular, alguns dos lugares mais sagrados do islão xiita no Iraque foram alvos de atentados bombistas, alguns dos quais a sua autoria não chegou a ser reivindicada por nenhum grupo, havendo suspeitas que os mentores destes ataques teriam como objectivo o fomentar da violência entre xiitas e sunitas. Isto foi como pólvora para o aparecimento e crescimento do Estado Islâmico.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Karbala e Samarra são duas cidades sagradas para os xiitas, contendo os mausoléus de alguns dos 12 imãs xiitas. Em Samarra, a Mesquita Al-Askari contém os mausoléus dos 10 e 11º imãs xiitas, e em Karbala encontram-se os mausoléus do Imã Hussain e seu irmão, Abbas. Todos estes locais foram alvos de atentados terroristas em 2006 e 2007, pelo que um dia viria a ser o Estado Islâmico. Em particular, a Mesquita Al-Askari em Samarra foi alvo de dois atentados, em 2006 e 2007, destruindo a cúpula e os dois minaretes da Mesquita, não provocando vítimas directamente, mas levando a uma onda de retaliações violentas que provocou a morte a mais de 100 pessoas nos dias seguintes aos atentados. Quando a visitámos, ainda estava em reconstrução, e o complexo religioso à sua volta continuava em estado de sítio, com estritas medidas de segurança de forma a evitar mais violência entre sunitas e xiitas. O Estado Islâmico já não estava ali mas o seu legado podia-se sentir.
Numa carta dirigida a al-Zarqawi em Julho de 2005, Ayman al-Zawahiri, um dos líderes da Al-Qaeda, delineou um plano de quatro etapas, a expulsão das forças americanas do Iraque, estabelecimento no Iraque de um emirado islâmico, a extensão da jihad aos países seculares vizinhos do Iraque, e finalmente, o confronto com Israel. Era o início do Estado Islâmico.
A AQI contribuiu para a insurgência de 2004-2007, mas a magnitude dessa contribuição é difícil de determinar com certeza. O que é certo é que al-Zarkawi tornou-se o homem mais procurado pelos americanos, com uma recompensa de 25 milhões de dólares pela sua captura ou morte. Em Junho de 2006, al-Zarkawi era morto num ataque aéreo em Baqubah, a cerca de 50 km de Bagdad.
3.3. O nascimento do Estado Islâmico no Iraque
Dois meses antes de ser morto, al-Zarkawi, talvez prevendo a sua morte eminente, fez uma jogada de mestre, juntando vários grupos insurgentes debaixo de uma só organização chamada “Mujahideen Shura Council” (MSC), assegurando uma força maior através da união e uma mais forte possibilidade de continuidade na luta contra os americanos. A verdade é que, poucos meses depois da morte de al-Zarkawi, foi divulgado um comunicado afirmando que o MSC havia sido dissolvido e substituído pelo “Estado Islâmico do Iraque”, com uma nova liderança. Tinha nascido oficialmente o Estado Islâmico.
Parecia que a guerra santa contra os infiéis estava longe de terminar. Nos anos seguintes, a insurgência aumentou de tal forma que os EUA se viram obrigados a aumentar em muito o número de tropas no terreno e a executar uma série de operações militares para neutralizar as lideranças e a capacidade militar dos grupos insurgentes. Finalmente, em Maio de 2010, a liderança do Estado Islâmico do Iraque, Abu Omar al-Baghdadi e Abu Ayyub al-Masri, foram ambos mortos por forças americanas e iraquianas, perto de Tikrit.
No entanto, imediatamente surgia uma nova figura na liderança do Estado Islâmico do Iraque, desta vez um homem chamado Abu Bakr al-Baghdadi, nascido na cidade iraquiana de Samarra, estudioso de teologia e que se juntou a grupos insurgentes após a invasão dos EUA. Baghdadi chegou a estar detido numa prisão americana na luta contra ao Estado Islâmico, não havendo certezas sobre quanto tempo al-Baghdadi terá estado preso, variando entre menos de um ano e cinco anos. O que parece inegável é que ali terá feito numerosos contactos com membros da Al-Qaeda, à qual se juntou pouco tempo depois, subindo gradualmente de “patente” dentro da organização, e terá partilhado o espaço prisional com alguns companheiros que se tornariam líderes do futuro Estado Islâmico.
Em Abril de 2010, al-Baghdadi era anunciado como Emir do Estado Islâmico do Iraque. Com a nova liderança, o Estado Islâmico do Iraque ganhou uma nova vida, lançando ataques bombistas a mesquitas sunitas e xiitas, assim como a instalações militares.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Em Bagdad, visitámos um local icónico da luta do Estado Islâmico do Iraque e das suas consequências para a sua população, a Catedral Sayidat al-Nejat, sede da igreja católica siríaca no Iraque e a maior igreja de Bagdad. A 31 de Outubro de 2010, foi atacada por seis terroristas que mantiveram reféns as pessoas que se encontravam na missa de Domingo. A igreja seria então tomada de assalto pelas forças iraquianas e os terroristas do Estado Islâmico detonaram os seus coletes de bombas, matando 58 pessoas. Hoje, no exterior da igreja, há um memorial às vítimas do Estado Islâmico e, em Março de 2021, foi o primeiro local que o Papa Francisco visitou na sua viagem ao Iraque. Os alegados mentores do ataque pertenciam ao Estado Islâmico do Iraque e foram presos passado um mês da tragédia, tendo sido mortos numa tentativa de fuga na prisão.
Em Outubro de 2011, Bin Laden era morto numa operação americana no Paquistão, e o Estado Islâmico do Iraque começava a alimentar a ideia de quebrar o cordão umbilical com a Al-Qaeda. Apesar de a situação no terreno não parecer totalmente controlada, em Dezembro de 2011 era anunciado o fim oficial da invasão americana, iniciando-se o regresso das tropas aos EUA (embora vários milhares se mantivessem na embaixada e consulados). Com a saída dos americanos, o crescente peso político interno de partidos com base xiita, e a eclosão de uma nova guerra do outro lado da fronteira do Iraque, na vizinha Síria, estavam lançados os dados para o renascimento do Estado Islâmico e a fundação do tão desejado califado islâmico.
3.4. O nascimento do Estado Islâmico no Iraque e Síria
O novo líder do Estado Islâmico do Iraque, Abu Bakr al-Baghdadi, criou uma nova estratégia, recrutando muitos homens da estrutura militar e de serviços de informação do regime de Saddam, então caídos em desgraça. Esta estratégia viria a dar ao Estado Islâmico mais profissionalismo e experiência de combate, conseguindo financiamento e recrutamento externos (principalmente na Arábia Saudita), e alimentando a orgânica de crescimento da organização, mas foi com o início da guerra civil na Síria, em 2011, que tudo mudou no Estado Islâmico.
Em Abril de 2013, al-Baghdadi anunciava a expansão do Estado Islâmico do Iraque para o território da Síria, renomeando-o como “Estado Islâmico do Iraque e Levante” (ISIL ou ISIS), e fundindo-se com o grupo jihadista sírio Jabhat al-Nusra (também conhecido como Frente al-Nusra), numa acção sem o “consentimento” dos líderes dessa organização e do líder da Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahiri, amigo e sucessor de Bin Laden.
O líder da Frente Al-Nusra, Abu Mohammad al-Julani, prestou fidelidade à Al-Qaeda, tornando-se o seu ramo sírio, mas o Estado Islâmico levou a sua ofensiva para a frente. Em Janeiro de 2014, o Estado Islâmico tomava a cidade de Raqqa, derrotando a Frente al-Nusra, e logo de seguida eram cortadas as ligações com a Al-Qaeda. A Frente Al-Nusra sobreviveria, no entanto, tornando-se um dos principais oponentes do Estado Islâmico nos anos seguintes, e aglutinando-se num grupo jihadista maior, em 2017, chamado “Hayat Tahrir Al Sham”, que continua activo ainda hoje.
4. O avanço do Estado Islâmico no Iraque
O avanço do Estado Islâmico na Síria e no Iraque tinha por base tácticas bem delineadas no terreno, antes do avanço militar, tais como espionagem, infiltração em unidades locais, eliminação de possíveis oponentes e construção de uma rede de apoio no terreno, que depois formaria a base do governo local do Estado Islâmico. Para além disso, certas missões específicas do Estado Islâmico eram postas em prática com precisão militar, tal como o ataque à famosa prisão de Abu Grahib em Julho de 2013 e a libertação de cerca de 500 prisioneiros jihadistas que tinham sido condenados à pena de morte.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Aquando da nossa viagem pelo Iraque, passámos junto a uma das principais prisões iraquianas, a Prisão al-Hoot, nos arredores de Nasiriyah, onde ainda hoje se encontram muitos elementos do Estado Islâmico, alguns dos quais foram condenados à morte, mas cuja sentença ainda não foi aplicada. A prisão foi construída pelas forças americanas, que ocuparam durante anos a base próxima do exército iraquiano, perto do sitio arqueológico de Ur. Em 2017, dezenas de detidos foram ali executados por pertencerem ao Estado Islâmico, e hoje é considerada a pior prisão iraquiana em termos de tratamento de detidos e respeito pelos direitos humanos. A maioria dos prisioneiros pertencerão ao Estado Islâmico.
Em meados de 2014, o Estado Islâmico estava a afirmar-se como o grupo fundamentalista islâmico mais poderoso da história, conquistando aquilo que muitos consideravam impossível. Mas os líderes do Estado Islâmico queriam mais, pensando numa expansão global. A nova estratégia global do Estado Islâmico foi delineada e posta em prática por elementos que tinham pertencido, na sua maioria, ao exército de Saddam Hussein ou às agências de informação iraquianas, organizados numa complexa rede de conselhos militares dentro do Estado Islâmico, que agora se dividia em duas partes, cada uma responsável pela Síria e pelo Iraque. Para além disso, o Estado Islâmico teria grupos que lhe prestavam fidelidade em numerosos países e regiões. No seu auge, o Estado Islâmico dominava partes significativas do território sírio e iraquiano, constituindo uma grave ameaça à integridade territorial desses países.
4.1. A campanha do Estado Islâmico na Província de Anbar
A província iraquiana ocidental de Anbar, que faz fronteira com a Síria, Jordânia e Arábia Saudita, foi sempre um foco de insurgência e de protestos contra o governo. Em particular, no ano de 2013, o sentimento anti-governo atingiu o seu máximo. A maioria sunita na região sentia-se, não só posta de parte e discriminada em relação a posições de poder, mas também perseguida com base naquilo que era visto como uma aplicação abusiva das leis anti-terroristas no país.
Assim, é de certa forma compreensível que o Estado Islâmico fosse visto com bons olhos nessa província, e foi aí que se iniciou a ofensiva que levaria ao maior crescimento do Estado Islâmico. No final do ano de 2013, os combatentes do Estado Islâmico assumiram o controlo de Ramadi, a capital da província, e Fallujah, uma das principais cidades, antes mesmo do Estado Islâmico, em Janeiro de 2014, tomarem a cidade de Raqqa, na Síria.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Na nossa viagem pelo Iraque, tivemos de passar por inúmeros checkpoints que fazem parte das medidas de segurança do actual governo iraquiano e que controlam a entrada nas principais cidades. Fallujah foi o local de mais difícil acesso que visitámos no Iraque e entrar na cidade foi muito moroso e complexo. É possível que ainda existam células do Estado Islâmico adormecidas no deserto circundante e as milícias iraquianas acreditam que também ainda poderão existir elementos do Estado Islâmico na cidade. Só conseguimos entrar porque o nosso guia tinha amigos dentro de Fallujah e eles responsabilizaram-se por nós.
O exército iraquiano ainda esboçou uma contra-ofensiva, mas o poder do Estado Islâmico era demasiado para as forças iraquianas. Em Junho de 2014, o Estado Islâmico controlava já cerca de 70% da província de Anbar, aproximando-se perigosamente de Bagdad.
4.2. A ofensiva do Estado Islâmico no Norte do Iraque
No início de Junho de 2014, partindo de território sírio, o Estado Islâmico iniciava uma segunda grande ofensiva no norte do Iraque, em simultâneo com o controlo da província de Anbar, lançando ataques contra cidades como Mossul, Samarra e Tikrit. Não se sabe ao certo o que ocorreu, sendo que as forças iraquianas podem ter sido apanhadas de surpresa, ou o medo tomou conta do seu discernimento, ou ainda foram dadas ordens superiores, o certo é que dezenas de milhares de combatentes iraquianos desertaram, fugindo e deixando cidades como Mossul à mercê do Estado Islâmico, a qual foi tomada pelo Estado Islâmico de um dia para outro.
Os combatentes do Estado Islâmico, em número muito inferior ao das forças iraquianas, parecia avançar sem grande resistência, tomando a cidade de Tikrit no dia seguinte a Mossul e parte da cidade de Samarra, chegando a dois quilómetros do Mausoléu de Al-Askari, um dos lugares sagrados do islão xiita no Iraque.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Em Tikrit, a cidade natal de Saddam Hussein, são ainda hoje bem visíveis sinais da ocupação pelo Estado Islâmico e da batalha pela cidade que se seguiu. A cidade acabaria por ser retomada pelas forças iraquianas em 2015, mas ainda hoje se pode testemunhar as consequências da guerra, sendo que os antigos palácios de Saddam, nas margens do rio Tigre, estão em ruínas, destruídos pelo Estado Islâmico. Este foi o palco de um dos maiores massacres do mundo.
Os curdos, descrentes na capacidade (ou vontade) das forças iraquianas em combater o Estado Islâmico, tomou para si a defesa daquele que consideravam o seu território, controlando a cidade de Kirkuk e os campos petrolíferos nos seus arredores. Entretanto, reforços vindos de Bagdad permitiram recuperar a cidade de Samarra e impedir um maior avanço do Estado Islâmico, que chegou a estar a cerca de 90 km da capital iraquiana.
No final de Junho de 2014, o governo iraquiano tinha perdido controlo das suas fronteiras com a Síria e Jordânia e grandes áreas territoriais no ocidente e norte do país, para o Estado Islâmico, mas também para as forças curdas, que reivindicavam a região autónoma do Curdistão iraquiano. Em Agosto de 2014, o Estado Islâmico fazia uma ofensiva no Curdistão, avançando rapidamente e, em poucos dias, o Estado Islâmico conquistou várias cidades importantes, entre as quais a cidade de Sinjar, chegando a cerca de 40 km da cidade de Erbil, a “capital” curda.
4.3. Estado Islâmico, o novo califado islâmico
A 10 de Junho de 2014 deu-se o momento mais simbólico da história do Estado Islâmico quando o seu líder, Al-Baghdadi, proclamou o novo califado islâmico mundial na Mesquita Al-Nuri, em Mossul, assumindo oficialmente o nome de “Estado Islâmico”. Tal como os primeiro califados islâmicos da história do Islão, a conquista dos territórios era vista como uma vitória da religião islâmica contra os infiéis, e a conquista de partes da Síria e do Iraque eram apenas vistos como o início de um controlo do Médio Oriente, Ásia Central, Norte de África e até da Península Ibérica, imitando as conquistas dos Califados Omíada e Abássida, o maior império que o mundo tinha visto até então, e que chegou a ter como capital a cidade de Raqqa, nova capital do Estado Islâmico.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – A Grande Mesquita al-Nuri era um marco histórico e arquitectónico da cidade de Mossul, com o seu minarete inclinado como imagem de marca. Foi ali que o Estado Islâmico foi anunciado ao mundo, e visitar o que restou desta mesquita foi um dos pontos altos da nossa viagem pelo Iraque. Apesar de ter uma longa vida de 850 anos, a mesquita acabaria por não sobreviver ao Estado Islâmico, tendo sido destruída nos últimos dias da batalha contra o Estado Islâmico por Mossul. Hoje, o pouco que restou da mesquita, essencialmente as suas paredes exteriores e pátio, são palco de obras de restauro por parte de equipas arqueológicas iraquianas, com o apoio da UNESCO. É, ainda assim, visível o lugar onde se encontrava o minbar, o púlpito de onde Al-Baghdadi proclamou o Estado Islâmico como novo califado.
5. A vida durante a ocupação do Estado Islâmico
A partir do momento em que a organização auto-intitulada “Estado Islâmico” ocupou áreas significativas da Síria e do Iraque, tornou-se efectivamente (se não oficialmente) um estado islâmico. Isso distinguia o Estado Islâmico de qualquer outro grupo extremista ou terrorista pois, durante alguns anos, partes significativas da Síria e Iraque existiram, não como parte desses países, mas sim como parte de um país regido pela lei islâmica (versão fundamentalista) e pela liderança político-militar e religiosa do Estado Islâmico, sendo estes responsáveis, não só pela guerra, mas também pela administração do território.
5.1. Financiamento do Estado Islâmico
O facto de o Estado Islâmico ter passado a ser responsável pela administração de um território de dimensões apreciáveis fazia com que tivesse de ser responsável pela administração civil, as finanças e a aplicação da lei. Se, por um lado, a conquista de novos territórios dava acesso a novos recursos, por outro lado as responsabilidades e exigências também eram outras. Quais eram então as fontes de rendimento do Estado Islâmico?
Curiosamente, a principal fonte de rendimento do Estado Islâmico era, tal como os outros estados, a aplicação de impostos. Num território com cerca de 8 milhões de habitantes (no seu auge), o Estado Islâmico impunha no seu território uma taxação sob a designação de “imposto religioso”, e punia severamente aqueles que não contribuíam. Para além disso, a venda de recursos naturais (nomeadamente a venda, ainda que ilegal, de petróleo vindo de poços no seu território) e a obtenção de resgates de raptos de estrangeiros (mas também populações locais) eram também fontes significativas de rendimento para o Estado Islâmico. No entanto, a maior parte dos especialistas é unânime em afirmar que, sem o apoio financeiro de países do Golfo Pérsico (com a Arábia Saudita à frente), o Estado Islâmico não conseguiria sobreviver, até porque o Estado Islâmico estava permanentemente em guerra em diferentes frentes.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Em Mossul, visitámos um local icónico da cidade, o túmulo do Profeta Jonas, cheio de história e local de veneração de judeus e cristão, que visitavam Mossul aos milhares por ano. Este lugar foi tomado pelo Estado Islâmico e parcialmente destruído, tendo sido vandalizado por dentro, mas também roubado de muitas peças que terão sido levadas para fora de Mossul e vendidas no mercado negro para o estrangeiro.
5.2. Violência e medo no Estado Islâmico
Se é verdade que o Estado Islâmico precisava de ganhar o apoio popular (do qual tinha apenas uma fatia, ainda que expressiva, das populações sunitas) e mostrar que era capaz de manter as infraestruturas básicas (como fornecimento de água e electricidade e trocas comerciais) no seu território, por outro lado, com as suas raízes no fundamentalismo islâmico e no caos como modo de subsistência, o Estado Islâmico usava a violência extrema como arma de intimidação, não só dos seus opositores políticos e militares, mas também das populações civis.
As pessoas que viviam sob a administração do Estado Islâmico tinham de lidar diariamente com a aplicação de impostos forçados (e mesmo confiscação de bens), o perigo de viver em zonas que estivessem na linha da frente dos combates, e o medo de represálias físicas e psicológicas por parte do Estado Islâmico, com base em denúncias feitas por informadores, inclusive crianças a denunciar as suas próprias famílias.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Mohammed é um jovem iraquiano que tinha 13 anos quando o Estado Islâmico invadiu Mossul. Nós conhecemo-lo quando visitámos Mosul e ouvimos da sua boca como era viver sob o jugo do Estado Islâmico. As privações e o medo eram uma constante diária durante a presença do Estado Islâmico, assim como o constante assédio dos combatentes do Estado Islâmico a crianças e jovens como Mohammed para se juntarem ao grupo e combaterem pelo novo califado islâmico. Apesar de tudo o que passou, Mohammed, agora com 20 anos, tem esperança num futuro melhor para o Iraque e deliciava-nos nas suas conversas com o seu belo sorriso.
5.3. Perseguição e genocídio no Estado Islâmico
A aplicação de penas duras e da pena máxima de morte era comum nas cidades do Estado Islâmico, um pouco na semelhança do regime dos talibã no Afeganistão. Todos as pessoas que não cumprissem com as suas exigências religiosas do Estado Islâmico, eram alvos de perseguição e violência, mas os não-muçulmanos e as minorias étnicas eram os principais alvos da violência do Estado Islâmico. Um caso paradigmático foi o da comunidade yazidi, uma etnia oriunda do Curdistão, que professa uma religião iraniana pré-zoroástrica e que habita principalmente o norte do Iraque. Os yazidis foram em várias épocas perseguidos pelos muçulmanos como sendo infiéis, mas durante a vigência do Estado Islâmico (que apelidava os yazidi de “adoradores do diabo”) foram alvo de uma perseguição que atingiu dimensões de verdadeiro genocídio, principalmente aquando da tomada da cidade de Sinjar, no Iraque.
Aqueles que da comunidade yazidi não conseguiram fugir (com ajuda de forças curdas) foram sujeitos pelo Estado Islâmico ao confisco de bens e propriedades, mortes indiscriminadas de homens e escravatura sexual de mulheres. Estima-se que o Estado Islâmico tenha morto mais de 5000 yazidis em campanhas de “conversão forçada” e tenha raptado mais de 7000 mulheres e jovens, apenas em Agosto de 2014, criando mais de 500.000 refugiados. Em 2018, Nadia Murad, uma activista de direitos humanos yazidi, que tinha sido raptada e mantida como escrava sexual pelo Estado Islâmico, recebeu o Prémio Nobel da Paz, pelos seus esforços em combater o uso de violência sexual como arma de guerra e conflitos armados.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Tikrit foi palco de um dos maiores massacres perpetrados pelo Estado Islâmico no Iraque, o Massacre de Camp Speicher. A 12 e Junho de 2014, combatentes do Estado Islâmico raptaram centenas de cadetes de uma base do exército iraquiano, Camp Speicher, que se dirigiam para Bagdad, alegadamente seleccionando aqueles que eram xiitas, e levando-os para a zona dos antigos palácios presidenciais de Saddam em Tikrit. Nesse dia, o Estado Islâmico foi responsável pelo assassinato indiscriminado de mais de mil soldados (estima-se que poderão ter sido 1700), tendo os corpos sido atirados para valas comuns e para o rio Tigre. Nós só visitámos Tikrit de passagem, e infelizmente não tivemos oportunidade de visitar o “Memorial aos Mártires” deste massacre que foi construído dentro de um dos antigos palácios presidenciais de Saddam.
5.4. Propaganda e expansão territorial do Estado Islâmico
Apesar de o Estado Islâmico defender um regresso aos primórdios do Islão do século VII, as estratégias que seguiu foram bastante modernas, nomeadamente o uso de propaganda, em particular nas redes sociais. Com uma máquina bem montada, o Estado Islâmico divulgava vídeos de promoção e onde publicitava as vitórias e as virtudes da vida no Estado Islâmico. Pelo Facebook e Twitter, foram muitos aqueles, homens e mulheres, que, nas comunidades muçulmanas de países como França, Bélgica e Reino Unido, foram atraídos pela perspectiva de participar activamente na construção de um “Estado Islâmico”. Apesar de uma fatia grande de combatentes do Estado Islâmico ser natural da Síria e Iraque, o número de combatentes estrangeiros no Estado Islâmico foi significativo, sendo que se estima que cerca de 25.000 pessoas estrangeiras tenham viajado para a Síria e Iraque para viver e combater pelo Estado Islâmico, .
Para além da internacionalização do Estado Islâmico em termos dos seus combatentes no terreno, uma das suas estratégias fundamentais foi a expansão territorial do chamado “Estado Islâmico”. O sucesso do avanço do Estado Islâmico conseguia a adesão de grupos noutros países que lhe prestavam fidelidade e que executavam ataque terroristas ou combatiam em guerras civis. Assim, em 2015, para além da reivindicação dos ataques terroristas ao Charlie Hebdo e ataques coordenados em Novembro, em Paris, ao Museu Bardo (Tunes) e Sousse, na Tunísia, e em Bruxelas, na Bélgica, o Estado Islâmico reclamava a conquista da cidade de Sirte (cidade natal de Muamar Kadhafi), na Líbia, e o facto de ter grupos activos no Egipto (Sinai), Arábia Saudita, Iémen, Argélia, Nigéria, Mali, Burkina Faso, Cáucaso, Filipinas, e Gaza, entre outros. A máquina no Estado Islâmico estava a funcionar.
5.5. Saque e destruição de património histórico pelo Estado Islâmico
Uma das facetas do Estado Islâmico era a sua aversão a todo e qualquer elemento cultural anterior ao Islão e, numa terra tão rica quanto a Mesopotâmia, era inevitável que o seu território viesse a englobar alguns dos locais arqueológicos e históricos mais importantes do mundo. Tanto na Síria como no Iraque, o Estado Islâmico usou o património cultural e histórico como fonte de rendimento, saqueando os lugares arqueológicos e vendendo peças e obras de arte no mercado negro.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Em 2010, nós visitámos as ruínas de Palmira, na Síria, uma das ruínas mais importantes do Médio Oriente. Palmira acabou por sofrer a ocupação do Estado Islâmico, tendo sido destruído muito do acervo do museu e bombardeadas (acidental ou propositadamente) parte do complexo das ruínas, quer durante a presença do Estado Islâmico na região, quer aquando da sua retoma pelas forças sírias apoiadas pelos russos.
Para além do saque, os efeitos colaterais da guerra e a destruição propositada pelo Estado Islâmico levaram a perdas irreparáveis no património cultural e histórico do Iraque e Síria. No Iraque, as ruínas de Nimrud, antiga capital da Assíria, foi totalmente destruída pelo Estado Islâmico, inclusive com o uso de maquinaria pesada como bulldozers.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Na nossa viagem pelo Iraque, vimos o que restou das portas das muralhas de Nínive, antiga capital da Assíria às portas de Mossul, destruída pelo Estado Islâmico. Algumas portas tinham sido reconstruídas no século XX, mas também elas não escaparam à destruição do Estado Islâmico. Hoje, Nínive espera mais uma vez que os esforços das autoridades iraquianas, apoiadas por organizações internacionais, recuperem algum do seu esplendor histórico. Para saber mais sobre Nínive, consulte este nosso artigo.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Hatra é um verdadeiro tesouro arqueológico no Iraque e também foi ocupada pelas forças do Estado Islâmico, que destruíram estátuas e representações de deuses romanos e persas. O local foi usado também como carreira de tiro pelo Estado Islâmico mas a maior parte do complexo sobreviveu para contar mais uma história. Contudo, o Estado Islâmico destruiu e vandalizou as estátuas das ruínas. Para saber mais sobre Hatra, consulte este nosso artigo.
6. Quem combateu o Estado Islâmico no Iraque e na Síria
O avanço do Estado Islâmico na Síria e, principalmente, no Iraque, fez soar os alarmes nos quartéis generais das principais potências mundiais e regionais. O facto de o Estado Islâmico ser opositor a praticamente todo o tipo de ingerência externa e facções internas fez com que abrisse guerra em várias frentes, contra adversários poderosos.
6.1. Irão e milícias iraquianas contra o Estado Islâmico
Em Junho de 2014, o Irão começa a envolver-se directamente na luta contra o Estado Islâmico, com o uso de drones e apoio material e humano na contra-ofensiva no Norte do Iraque, aumentando em muito a sua influência política e militar no seu país vizinho, algo que tem repercussões até hoje. O clérigo xiita iraquiano Al Sistani apelou à guerra santa dos xiitas contra o Estado Islâmico, levando à inscrição de dezenas de milhares de homens as milícias armadas.
Após a derrota do Estado Islâmico, principalmente na Batalha de Mossul, as milícias iraquianas com apoio do Irão controlam efectivamente grande parte do Norte do Iraque, dividindo-se em inúmeros grupos armados, mas a maior parte deles englobados nas “Forças de Mobilização Populares”, uma das organizações mais poderosas do Iraque actual.
6.2. EUA e curdos contra o Estado Islâmico
Em Agosto de 2014, em plena ofensiva do Estado Islâmico no Curdistão, o presidente americano, Barack Obama, decide intervir no conflito, com o início de ataques aéreos a posições do Estado Islâmico no Iraque e Síria, e apoio material às forças curdas e iraquianas, e às “Forças Democráticas da Síria”. Os EUA lideraram uma coligação militar internacional contra o Estado Islâmico, Combined Joint Task Force Operation Inherent Resolve (CJTF-OIR), à parte da NATO (na qual todos os membros desta organização participaram de alguma forma) sendo que participaram também nos ataques aéreos a Austrália, Canadá, Dinamarca, França, Jordânia, Bélgica, Países Baixos, Arábia Saudita, Turquia, Emirados Árabes Unidos, e Reino Unido. Para além disso, tropas especiais americanas passaram a estar presentes no terreno, quer no Iraque, quer na Síria, para combater o Estado Islâmico.
Os curdos, apoiados pelos EUA, foram uma das principais forças de oposição ao avanço do Estado Islâmico no Norte do Iraque, até porque a sobrevivência do Curdistão como território estava em risco. Em conjunção com as forças iraquianas, os curdos foram também responsáveis pela recuperação do terreno conquistado pelo Estado Islâmico no Iraque, tendo sido essenciais nesse esforço de vários anos.
6.3. Rússia, Turquia e Israel contra o Estado Islâmico
Em Setembro de 2016, a Rússia decide intervir na guerra civil da Síria, iniciando ataques aéreos a posições do Estado Islâmico, e envolve também tropas russas no território sírio, contra o Estado Islâmico, mas também combatendo os rebeldes sírios que se opunham ao regime de Bashar al-Assad. As forças russas foram essenciais na reconquista de cidades como Aleppo (controlada por forças rebeldes) e um retomar do controlo da maior parte do país pelo regime de Bashar al-Assad, sendo também uma peça essencial na derrota do Estado Islâmico.
A Turquia tem tido uma intervenção significativa, mas ambígua, na guerra civil da Síria. Sendo a favor da oposição ao regime de Bashar al-Assdad, o seu foco principal tem sido usar facções rebeldes para impedir o avanço das forças turcas que compõem a maioria das “Forças Democráticas da Síria” (SDF). Os turcos controlam uma área significativa do norte da Síria (junto à fronteira com a Turquia), e têm impedido o avanço final das forças do regime, sendo que foi na região de Idlib onde os últimos líderes do Estado Islâmico estavam escondidos.
Israel tem intervido na guerra civil da Síria com bombardeamentos, com o principal objectivo de diminuir a influência das forças apoiadas pelo Irão e pelo grupo Hezbollah.
7. A derrota do Estado Islâmico
A verdadeira coligação de esforços internacionais contra o Estado Islâmico criaram as condições para o isolamento e eventual derrota do Estado Islâmico, mas também para uma escalada na violência, uma agudização do sofrimento das populações civis sírias e iraquianas e um prolongar no tempo destes conflitos.
As principais batalhas contra o Estado Islâmico foram as de Raqqa, na Síria, e Mossul, no Iraque. A Batalha de Mossul contra o Estado Islâmico, que durou entre Outubro de 2016 e Julho de 2017, é considerada a maior operação militar desde a invasão do Iraque pelos EUA em 2003, e a maior batalha urbana desde a II Guerra Mundial. Os bombardeamentos aéreos e de artilharia, e a luta rua a rua entre forças iraquianas e curdas, apoiadas pelos EUA, e o Estado Islâmico, levou à destruição completa da parte mais antiga da cidade, onde se refugiaram os combatentes do Estado islâmico. Ainda hoje, Mossul tenta levantar-se das ruínas dessa batalha contra o Estado Islâmico.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Mossul foi a cidade que mais nos impressionou visitar no Iraque. Foi a última cidade a ser recuperada ao Estado Islâmico e ainda tem muitos sinais de destruição, com a Cidade Velha completamente destruída, vítima de bombardeamentos aéreos e de artilharia, com corpos ainda soterrados debaixo dos escombros. Contudo, Mossul também impressiona pela positiva, pois a cidade já tem uma área nova e reconstruída, recuperada pelos seus habitantes que, mesmo depois de terem vivido durante três anos sob a ocupação do Estado Islâmico, conseguiram sobreviver e ter forças para renascer de novo e reerguer a sua cidade.
Em Outubro de 2017, Raqqa, capital do Estado Islâmico, caía às mãos das “Forças Democráticas da Síria”, apoiadas pelos EUA e, finalmente, em Outubro de 2019, o Estado Islâmico deixava de controlar a última cidade em território sírio, e era anunciada a morte do líder do Estado Islâmico numa operação militar dos EUA na província de Idlib, na Síria.
O líder do Estado Islâmico que se seguiu, Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurashi, foi também morto numa operação dos EUA em Fevereiro de 2022, também na Síria, junto à fronteira com a Turquia, levantando questões acerca do apoio da Turquia a movimentos extremistas sunitas no território sírio. Actualmente, há algumas bolsas de resistência do Estado Islâmico na Síria e no Iraque, mas a sua presença no terreno pode ser considerada residual. No entanto, a guerra civil da Síria continua.
8. O futuro do Iraque depois do Estado Islâmico
Muita coisa tem estado a mudar no Iraque depois do Estado Islâmico. Embora a situação actual no Iraque (2022) seja de paz generalizada, embora fortemente militarizada, a existência de milícias armadas apoiadas pelo governo e de grupos insurgentes das mais variadas origens e influências externas, aliada à ainda presença pontual de tropas americanas no terreno, fazem com que a realidade pós Estado Islâmico seja de uma paz frágil e passível de desembocar novamente em conflitos armados. O Estado Islâmico no Iraque é passado mas é mais complexo do que isso.
8.1. Sinais conflituosos para o futuro do Iraque
O Iraque encontra-se actualmente numa encruzilhada, mesmo depois da libertação do Estado Islâmico. Por um lado, finda a Guerra do Iraque e derrotado o Estado Islâmico, o país voltou a uma certa normalidade, e passados alguns anos as tropas americanas voltaram a abandonar oficialmente o terreno. A visita do Papa Francisco, em Março de 2021, ajudou a regularização da situação e o estabelecimento de novos objectivos de convivência política e religiosa depois do Estado Islâmico. No seguimento dessa visita, o Iraque estabeleceu um novo regime de entrada no país, criando uma lista de dezenas de países (Portugal incluído) cujos cidadãos podem entrar no Iraque com um visto obtido à chegada.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – A Igreja de Bakhdida, perto de Mossul, foi a igreja eleita pelo Papa Francisco para dar uma missa quando visitou o Iraque em Março de 2021. Essa escolha teve a ver com a presença do Estado Islâmico no Iraque. Hoje é um lugar de culto cristão, requalificado e interessante de visitar, localizado numa zona suburbana de Mossul que é de maioria cristã. A igreja original foi completamente destruída pelo Estado Islâmico e há ainda uma parede cheia de marcas de balas preservada, bem como um pequeno canto da igreja, o único que ficou de pé. No pátio interior, a massa que une as tijoleiras do chão tem incrustadas balas usadas pelo Estado Islâmico.
Por outro lado, a sociedade iraquiana continua a ser muito militarizada e com muitas armas espalhadas por largas franjas da população desde a presença do Estado Islâmico. A presença americana ainda se faz sentir em algumas bases no Iraque, “a pedido da República do Iraque”, para assistir e ajudar à estabilização política e militar. Mas as acções americanas têm contribuído pouco para a pacificação do país, sendo o exemplo recente mais flagrante o assassinato (num ataque de drone em pleno Aeroporto Internacional de Bagdad) de duas altas figuras, Qasem Soleimani, um general iraniano da Guarda Revolucionária Islâmica e Abu Mahdi, líder das Forças de Mobilização Popular, as milícias mais poderosas do Iraque, acto que incendiou os ânimos mesmo dos iraquianos mais moderados.
As rivalidades religiosas e políticas também continuam acesas, e no rescaldo das recentes eleições para o parlamento, em Outubro de 2021, ocorreram alguns confrontos em Bagdad. O resultado das eleições foi uma dispersão muito grande dos votos, sendo que o partido mais votado foi o Movimento Sadrista, liderado pelo clérigo xiita Muqtada al-Sadr, famoso pelo seu papel na insurgência contra a presença amaericana, com 73 parlamentares eleitos num total de 329.
8.2. O Curdistão e a divisão do Iraque
Outra questão fundamental na discussão do Iraque do futuro é o Curdistão, onde o Estado Islâmico também chegou. O Iraque, oficialmente República do Iraque, é composto por 19 regiões, sendo que quatro dessas regiões fazem parte do Curdistão iraquiano. O Curdistão é um território geocultural, não um país, embora há muito que lute pela sua independência, dividido por quatro países, Turquia, Iraque, Síria e Irão. O Iraque é o único país que reconhece o Curdistão dentro de suas próprias fronteiras, concedendo-lhe um regime de autonomia, fruto também da Guerra do Iraque, sendo composto por quatro regiões habitadas por curdos, Erbil, Dohuk, Sulaymaniyah e Halabja, mas a questão da independência nunca está esquecida e durante a presença do Estado Islâmico renasceu ainda mais. Aliás, há quem profetize o desmembramento do Iraque em três países, correspondente às três grandes divisões da população, curdos a norte, sunitas ao centro e xiitas a sul. Quem sabe não será essa a melhor solução para um país tão fragmentado?
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO -Terminámos a nossa viagem pelo Iraque atravessando a “fronteira” para o Curdistão, em direcção a Erbil, capital do Curdistão Iraquiano, uma cidade cosmopolita, e muito diferente do resto do Iraque. Pelo caminho vimos campos de deslocados da ONU, repletos de populações que fugiram ao Estado Islâmico. Erbil deveria servir de porta de entrada para explorar a região do Curdistão, que tem imensos lugares interessantes para conhecer mas, infelizmente, não tínhamos mais tempo, por isso o Curdistão Iraquiano ficará para uma próxima viagem. Contudo, apaixonámo-nos por Erbil com facilidade, visitando a Cidadela e percorrendo os bazares, e queremos muito regressar para explorar ainda melhor a cidade e o resto da região.
8.3. O futuro e a esperança das novas gerações
Finalmente, as novas gerações, muitos dos jovens já nascidos após a invasão dos EUA, e que cresceram com a ameaça do Estado Islâmico, começam a reclamar um novo Iraque. Entre 2019 e 2021, ocorreu uma espécie de “Primavera Árabe” em Bagdad e outras cidades, com protestos e manifestações contra a corrupção, o desemprego e a ineficiência dos serviços públicos, reprimidos com violência pelo governo, pela mão de milícias armadas com ligações ao Irão.
O QUE VIMOS NA NOSSA VIAGEM RELACIONADO COM O ESTADO ISLÂMICO – Algo muito importante que aprendemos na nossa viagem pelo Iraque foi que a população em geral está farta de conflitos e quer um futuro de paz e desenvolvimento, longe dos tempos da Guerra do Iraque e do Estado Islâmico. Em particular, as gerações mais novas querem pôr a Guerra do Iraque e o Estado Islâmico para trás das costas e construir uma vida melhor para si e para as suas famílias, tal como todas as pessoas no mundo. Ali, o nosso jovem guia no Iraque, os seus amigos e amigas em Najaf e Bassorá, e Mohammed, o jovem adolescente de Mossul, são os símbolos de uma nova esperança no Iraque, um olhar diferente para o futuro, para além do Estado Islâmico, e uma grande vontade em aprender com os erros do passado e construir um país melhor. As suas aspirações e preocupações, tal como as desenhadas nos grafitis dos túneis da praça Tahrir, assemelham-se a de todos os outros jovens pelo mundo fora, mas os jovens iraquianos parecem ter mais crença na sua capacidade de construir o seu próprio futuro.
A influência política e militar do Irão no Iraque, a tensão eterna entre sunitas e xiitas, a presença do Estado Islâmico nas montanhas e a capacidade de intervenção das gerações mais jovens serão temas fulcrais no futuro do Iraque e o rumo que este país tomará nos próximos anos. No entanto, a mensagem que trouxemos da nossa viagem no Iraque foi uma mensagem de esperança. Finda a Guerra do Iraque, os jovens acreditam que podem mudar o seu país e que vão conseguir construir um Iraque melhor a curto e médio prazo, longe da imagem de destruição deixada pelo Estado Islâmico. Será a ilusão da juventude, ou terão mesmo os jovens iraquianos força e determinação para mudar o seu país? Para bem do Iraque e dos iraquianos, esperamos sinceramente que sim.
Como viram, perceber o Estado Islâmico não é fácil porque tudo o que envolve o Estado Islâmico é muito complexo. O Estado Islâmico ainda hoje está envolto em nuances e informações contraditórias, muitas até contra-informações, e continua a não ser fácil perceber tudo aquilo que envolve o Estado Islâmico. O Estado Islâmico é dotado de tal complexidade que ainda hoje não sabemos se poderá ressurgir e onde isso poderá acontecer.
Se estiver interessado em visitar ou conhecer melhor o Iraque, consulte os nossos seguintes artigos:
- VIAJAR NO IRAQUE – Tudo o que precisa de saber para começar a planear a sua viagem no Iraque, a Antiga Mesopotâmia, está neste artigo. Inclusive informação para saber a influência do Estado Islâmico na região.
- GUIA DE VIAGEM NO IRAQUE – Da nossa viagem ao Iraque fizemos um Guia de Viagem com informação útil e actualizada, contactos no terreno, dicas práticas de transporte e alojamento, para poder viajar de forma independente ou em tour no Iraque. Inclusive informação para saber a influência do Estado Islâmico na região.
- GUERRA DO IRAQUE – A história contemporânea do Iraque, importante para quem vai visitar o país e pretende perceber exactamente aquilo que vai ver no terreno e que dificuldades vai enfrentar, inclusive informação para saber a influência do Estado Islâmico na região..
- VIAJAR NA MESOPOTÂMIA – Se vai viajar para o Iraque este é um artigo que lhe pode interessar, já que contextualiza a importância do país e o seu legado desde os tempos da Mesopotâmia.
- VIAJAR NA SUMÉRIA – Conheça a história da Suméria e as cidades históricas de Uruque e Ur, duas das mais antigas e principais cidades da antiga Mesopotâmia.
- VISITAR A ASSÍRIA – Conheça a história da Assíria e a cidade histórica de Nínive, uma das mais antigas e principais cidades da antiga Mesopotâmia. Esta foi uma das zonas mais fustigadas pelo Estado Islâmico.
- VISITAR A BABILÓNIA – Conheça a cidade histórica da Babilónia, uma das mais antigas e principais cidades da antiga Mesopotâmia, e a história do grande império competidor da Assíria, assim como outros lugares ligados à Babilónia, como Dur-kurigalzu e Borsippa.
- PÉRSIA NO IRAQUE – Conheça a história da Pérsia na Mesopotâmia e as cidades históricas de Ctesiphon e Hatra, verdadeiros tesouros arquitectónicos e arqueológicos do Iraque. Alguns destes lugares forma vandalizados pelo Estado Islâmico.
- LUGARES SAGRADOS DO ISLÃO NO IRAQUE – Conheça as cidades sagradas do Islão no Iraque, Najaf, Karbala e Samarra e outras, e outros lugares de interesse religioso e histórico. Também aqui há testemunhos do Estado Islâmico.
- ESTADO ISLÂMICO NO IRAQUE E NA SÍRIA – Um artigo obrigatório para perceber o contexto do aparecimento do Estado Islâmico, a forma como o Estado Islâmico cresceu e prosperou e como foi actuando e sendo financiado ao longo do tempo. O artigo termina com a explicação da luta contra o Estado Islâmico e a sua queda. O último desafio é perceber qual será o futuro do Iraque.