Depois de explorar a cidade de Kashan decidimos fazer uma incursão pelo deserto iraniano, Dasht-e Kavir. Estamos em Julho e as temperaturas em Kashan já são proibitivas. Uma incursão pelo deserto iraniano teria que começar bem cedo e ser bem pensada. Iríamos apanhar mais de 50ºC. Sendo assim, escolhemos começar a nossa aventura pelas quatro e meia da madrugada. Sim, porque aventura é mesmo o termo certo.
Hussein é o nosso guia e Hassan é o nosso motorista. Ou melhor, o nosso primeiro motorista no deserto iraniano. Convém concentra-nos mesmo nos nomes e nos números de motoristas que vamos ter hoje. Saímos de Kashan a caminho do deserto com o objectivo de ver o nascer do sol no lago salgado de Namak. Mas, tudo não passou de um plano. Eram cinco horas da manhã quando o eixo das rodas traseiras do carro partiu. Estávamos na orla do deserto iraniano e não havia como o reparar.
Hussein telefonou para Kashan e conseguiu que um amigo, Ibraim, viesse ter connosco com outro carro. Só tivemos que esperar na estrada até às seis horas da manhã. Ver o nascer do sol no lago salgado estava fora de questão mas ainda tínhamos esperança de o conseguir ver nas dunas de areia no deserto iraniano.
Quando o Ibraim chegou, mudamos de carro, despedimo-nos do Hassan (que só se ria) e lá fomos nós para o deserto. O carro do Ibraim estava imaculado, brilhava e até tinha os estofos forrados com plástico. Será que ele sabia que ia levar o carro para o deserto iraniano? O sol começou a nascer e nós ainda não tínhamos chegado às dunas do deserto iraniano. Paramos para tirar uma fotografia mesmo na estrada.
Quando chegamos às dunas o sol já estava bem acima do horizonte e nós subimos às dunas de areia amarela. O Rui estava cheio de vontade de desfrutar do deserto que começou a correr e a saltar. Claro que tal destreza só poderia ter terminado com um tombo seguido por várias cambalhotas duna abaixo.
Seguimos viagem, agora para o lago salgado, onde deveríamos ter chegado para ver o nascer do sol. Mas, nem o nascer do sol, nem tão cedo! Pelo caminho, Ibraim ficou com o carro atolado na areia do deserto. Sim, o mesmo carro que vinha limpo e imaculado. O rapaz saiu e bracejava desesperado. Nós, não queríamos acreditar na nossa falta de sorte.
Eram nove horas da manhã e as temperaturas já deviam ser superiores a 45ºC. O sol queimava e eu sentia a transpiração escorrer-me pelo corpo abaixo. Para além disso, o calor que sentia na cabeça envolta pelo lenço era insuportável. Sentia o cabelo encharcado e o pescoço todo pegajoso. Mas, não podíamos desanimar e ficar ali no meio do deserto. Tínhamos que tomar uma atitude.
Tiramos os papéis que ainda envolviam os tapetes imaculados do carro do Ibraim e colocamo-los junto aos pneus dianteiros. O Ibraim não queria acreditar no que lhe estava acontecer. Eu fui para o volante e o Rui, o Hussein e o Ibraim foram empurrar o carro. Mas este nem se mexia. Para ser mais rigorosa, o carro mexia-se mas era para se enterrar ainda mais.
O calor apertava cada vez mais. As temperaturas eram cada vez mais elevadas e tornavam-se insuportáveis. Não havia maneira de contactar ninguém. Não havia rede de telemóvel e não passava nenhum carro.
De repente, aparecem dois carros que vinham de Kashan. Um com um casal belga e o outro com um senhor nitidamente afectado pelo consumo de estupefacientes (isto a julgar pelos seus olhos). Todos juntos tentamos mover o carro. Tarefa inglória mais uma vez.
Entretanto aparece um camião carregado de sal. O Hussein faz-lhe sinal para parar. O camionista, igual a tantos outros espalhados pelo mundo, tem os seus posters de mulheres a cobrir a cabine do camião. A diferença é que estas mulheres estão vestidas e usam lenço. Têm um ar respeitável.
Pensamos que iríamos ser salvos pelo camionista mas não. Ele tinha força mas não tinha corda e por isso foi apenas mais um para se juntar ao grupo e tentar tirar dali o carro. O resultado, embora com pequenas oscilações, foi o mesmo: o carro continuou enterrado.
O calor era cada vez pior. Apetecia-me arrancar o lenço da cabeça e tirar aquela roupa de estufa. Não sei quantos graus estavam mas quando o Hussein disse:
– Vamos com aquele senhor até ao lago e ao caravançarai? – apontando para o homem de olhos vermelhos.
Eu, prontamente respondi que sim. Abandonámos o nosso segundo motorista nas areias do deserto. Ibraim ficou para trás como um cão sem dono. Tínhamos que ir buscar ajuda. Até ao caravançarai não era longe. Ainda passamos pelo lago salgado e paramos para uma fotografia rápida.
O caravançarai estava completamente isolado no meio do deserto. Quando lá chegamos havia um tanque com água fresca que era transportada desde as montanhas. Refrescamo-nos. Lavamos as mãos e a cara.
Este era um dos caravançarais utilizados na Rota da Seda para atravessar a Pérsia. Há mais de mil caravançarais no Irão e distam entre 30 a 50 km uns dos outros, distância que deveria ser percorrida por dia. No verão, os mercadores percorriam essa distância de noite e descansavam no caravançarai durante o dia. No inverno, as distâncias eram percorridas durante o dia e os animais e os comerciantes procuravam abrigo nos caravançarais durante a noite.
O Hussein recolheu umas pás e uns baldes e saímos ao encontro do Ibraim, o nosso 2º motorista que estava encalhado nas areias do deserto. Alguns camelos selvagens passeavam-se nas imediações do caravançarai e embora estivesse cheia de calor, transpirada e exausta, este pareceu-me o cenário do meu imaginário da Rota da Seda.
Quando íamos a caminho das dunas de areia o Ibraim já vinha a caminho. Tinha passado um camião de recolha do sal e tinha-o içado com um cabo. Vinha todo transpirado, sujo e o carro estava longe do glamour que exibia pela manhã.
Trocamos de carro. Despedimo-nos do nosso 3º motorista, de quem já tinha desistido de saber o nome, e saímos do deserto. O carro estava cheio de areia e pó, e nós também. O calor era cada vez mais insuportável. Íamos regressar a Kashan, ou à orla do deserto.
Pelo caminho passamos por um carro que deveria estar com o Hassan (lembram-se do nosso 1º motorista que tinha ficado com o eixo dos pneus partidos do deserto?), mas que não o tinha encontrado. Isto significava que o Hassan continuava sozinho no deserto!
Era meio-dia quando o encontramos. Estava coberto de transpiração, bracejava e reclamava enquanto ria e despejava uma garrafa de água sobre a cara. Apreciei especialmente o seu sentido de humor mesmo depois de estar seis horas sozinho no deserto. Se fosse eu fulminava-os a todos só com o olhar!
Agora com alguém para auxiliar o Hassan, voltamos a despedir-nos dele e a regressar a Kashan. Pelo caminho, ainda visitamos o mausoléu de um dos filhos mais velhos do profeta Maomé, em Aran (onde tive que colocar o chador), e uma cidade subterrânea em Olee.
Chegaríamos a Kashan por volta das 13h, cheios de sede, cheios de fome, transpirados, suados, sujos mas vivos. Infelizmente é Ramadão e para comer e beber tivemos que o fazer às escondidos e no restaurante tradicional da casa Abbasian, o único local onde se pode comer durante este período. Sentei-me, tirei o lenço (com autorização do dono) e respirei fundo. Este é um bocado do Irão que ainda estava escondido por baixo do lenço.
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