Puri é uma cidade fascinante, tida pelos hindus como um dos locais mais sagrados da Índia, e um foco de peregrinação há mais de 1000 anos. Sem a projecção internacional de Varanasi, é possível observar em Puri alguns dos elementos culturais e históricos que constituem a identidade indiana, e numa forma pura e quase intocada pelo tempo.
Para o bem, e para o mal, a religião está na base do que a Índia é, e do que aquele território era, muito antes de existir uma identidade nacional. O hinduísmo moldou o subcontinente à sua imagem, criando uma sociedade com características únicas no mundo. Para se compreender a Índia, para se viver esse país, tem de se entender o que é o hinduísmo. E Puri é um local privilegiado para se conseguir isso, sendo possível observar o aspecto mais institucional da religião, mas também o lado mais pessoal.
Mas Puri também tem praia, que atrai os turistas locais com passeios de camelo em frente ao mar. Um contraste difícil de absorver.
Templo de Jagannath
O local que atrai quase todas as atenções daqueles que visitam a cidade é o templo de Shree Jagannath, cujo complexo actual foi crescendo a partir do século XII, no sítio de um templo anterior. Apesar de os não-hindus não poderem aceder ao interior do templo (e acreditem, nós tentámos!), é uma experiência única deambular pelo exterior, e observar as multidões que se acumulam, num movimento constante de entrada e saída do templo.
Puri é um caso paradigmático do poder instituído da religião na Índia, durante milénios, e que se mantém quase intocado nos nossos dias. Durante séculos, Puri foi invadida dezenas de vezes, por exércitos hindus e islâmicos, todos atraídos pelas riquezas escondidas do templo de Jagannath. Com origens que se perdem no tempo, e que os estudiosos debatem ainda hoje, pensa-se que é um culto que resulta da fusão de elementos tribais, budistas, jainistas e de diferentes tradições hindus.
Hoje as divindades adoradas em Puri constituem uma trindade, Jagannath, acompanhado de seu irmão, Balabhadra, e irmã, Subhadra. Os ícones são não-antropomórficos, feitos de troncos de árvores que são esculpidos, pintados e decorados com figuras com grandes olhos que parecem perfurar aquele que os fixa. Apesar de Jagannath ser encarado como uma encarnação de Vishnu, a tradição dá-lhe atributos de outros avatares, sendo o ícone vestido e adorado de diferentes formas em ocasiões especiais. Os sacerdotes que tratam dos ícones e supervisionam o complexo pertencem a uma mesma dinastia familiar que o faz há séculos. O poder religioso perpetua-se com reverência e tradição.
O templo visto de cima
Também nós nos deixamos enredar por aquele espectáculo e percorremos as ruas em redor do templo com uma curiosidade enorme por tudo que acontecia à nossa volta. A força que o espectáculo religioso, quase mediático, tem sobre as multidões é simplesmente assombroso. É quase uma hipnose colectiva, que toma conta da vontade dos indivíduos e transforma a massa de pessoas em algo mais do que a soma de cada uma delas.
Subimos a um edifício perto do complexo, uma espécie de hotel para a população local e para peregrinos. A perspectiva sobre os edifícios do complexo, em forma de torre, era interessante, mas o que nos tocou foi a simplicidade daqueles que estavam dentro do hotel e que nos sorriam e perguntavam de onde vínhamos. A riqueza de Puri não está no templo, nem nos santuários, está nas pessoas, nos rituais que são feitos nas ruas, nas ladainhas que os crentes vão murmurando, na fé que move as multidões.
A atracção dos festivais em Puri
A manifestação de devoção atinge o seu auge durante os variados festivais que acontecem em Puri durante o ano. Infelizmente, chegámos a Puri demasiado tarde para assistirmos ao maior festival de todos, o Ratha Yatra, quando enormes carruagens de madeira percorrem o trajecto de quase três quilómetros até ao templo de Gundicha, transportando o famoso trio de figuras das divindades.
Quando visitámos Puri, uma dessas carruagens estava ainda exposta junto à entrada principal do templo, e pela sua imponência pudemos ter uma ideia da grandeza desse festival. Quem sabe se não voltaremos um dia, e nos juntaremos a mais de um milhão de pessoas, que vem a Puri para assistir a tal acontecimento único.
No entanto, acabámos por ser testemunhas de outra data especial (o hinduísmo tem muitas delas!), pois naquele dia celebrava-se o aniversário do nascimento de Krishna, o oitavo avatar de Vishnu, e com o qual Jagannath é comummente identificado. As festividades de Krishna Janmashtami eram bem visíveis à volta do templo e lá dentro, durando quase a noite toda, pelo que conseguimos ouvir do quarto do nosso hotel, na avenida principal.
Puri Swargadwar, a Porta para o Céu em Puri
Mas Puri tem mais a mostrar a quem a visita. Nela, mostram-se aqueles elementos que fizeram e fazem a humanidade virar-se para o religioso, a pobreza, a injustiça, e, acima de tudo, a morte. Haverá sempre desconhecido, e medo e curiosidade. Haverá sempre o sentimento que não controlamos a nossa vida, que há algo, ou alguém, que tem o poder de tornar o caos aparente em ordem, a arbitrariedade em lógica, o incógnito em familiar.
E um dos momentos, talvez o mais próximo de todos, em que encaramos a ideia de Deus de frente, é quando damos de caras com a inevitabilidade do fim, a incerteza do que está para além, a aparente ausência de propósito face à extinção do eu.
É aqui a Índia nos ensina mais uma lição. É por isso que viajar ali não é fácil. Não se deve esconder a morte e os mortos, como se fizessem parte de uma realidade à parte da nossa. Mostre-se, e sinta-se intimamente o que é perder aqueles que amamos e que nos amavam. E é nos ghats crematórios de Puri que a realidade nos atinge com toda a sua força.
Em Puri, longe dos crematórios apinhados de curiosos de Varanasi, pode testemunhar-se esses momentos únicos, quando os vivos dizem adeus aqueles que partiram, e questionam o porquê de tudo. Quando aquela pessoa que, até ao dia anterior, ria connosco, comia connosco e fazia parte da nossa vida, passa a estar imóvel, silenciosa e sem aquilo que fazia dela o que ela era, questionamo-nos a nós e ao universo.
Perdemos parte de nós, e encaramos a certeza que um dia nos perderemos a nós. Talvez seja isso o que é ser humano; olhar no rosto da morte e vermo-nos ao espelho. Cada um procura a resposta às suas perguntas à sua maneira, mas é essa procura, pessoal e colectiva, que talvez defina a humanidade.
Em Puri, as chamas do crematório são luz que leva à reflexão. O calor que derrete a gordura do corpo de alguém, as chamas que chamuscam a carne, o fumo negro que sobe no ar, as cinzas que se espalham e se colam à roupa e pele de quem assiste. O neto que observa a cremação da sua avó, e que questiona o porquê daquele ritual. A filha que chora agarrada ao corpo de sua mãe.
O filho que auxilia ao ritual, sem questionar, e dá início a tudo pondo um pano a arder na cara daquela que o pôs no mundo. O profano e o sagrado, o terreno e o divino, o físico e o etéreo, presentes nos crematórios ao ar livre de Puri.
Um momento inesquecível, uma lição de vida e de morte, uma prova de que as viagens também marcam as pessoas, e que a Índia é o país que mais nos marca, sem filtros, nem moderação. Viajar na Índia transforma-nos, e vimos de lá diferentes. Para melhor ou para pior, depende de cada um de nós, mas ninguém lhe fica indiferente.
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Para mim este foi de longe o artigo mais interessante que li no vosso blog.
Já estive na Índia e revi-me nestes pensamentos. Ninguém vem igual, sem dúvida. Presenciei também este ritual das cremações que me impressionou bastante.
Isto é viajar. Fantástico artigo.
Olá! Obrigado, espero que não tenha sido por falta de interesse dos outros posts. 😉 eheheh Muito obrigado. A Índia muda-nos mesmo.