Como gosto de dizer, viajar na Índia é um murro no estômago, que se aprende a aguentar e nos torna mais fortes. Isto porque quem vive na Índia leva esse murro desde que nasceu, já nem sequer o sente, porque, provavelmente, nunca viveu de outra maneira. Os habitantes da Índia são uma prova de resiliência, de força, de superação, mesmo numa altura em que o país se está a desenvolver e a população tem cada vez melhores condições de vida. No entanto, apesar do desenvolvimento a que se assiste na Índia, Calcutá parece permanecer imóvel e impugnável.
Calcutá parece ser uma cidade parada no tempo, onde nada mudou. Em conversa com um homem nas ruas da baixa de Calcutá, enquanto me abrigava das chuvas de monção, ele dizia-me “Calcutá é uma cidade morta. Tudo muda na Índia, menos Calcutá”. Disse-lhe que não, que as coisas iam mudar e melhorar. Mas alguns dias depois dei comigo a concordar com ele. As ruas de Calcutá são e serão o último reduto da pobreza na Índia.
Calcutá é um daqueles murros bem fortes. As ruas da cidade cobrem-se de gente pobre que abandonou as zonas rurais e se deslocou para a grande cidade em busca de uma oportunidade e de melhores condições de vida.
Chegam a Calcutá cerca de 2000 pessoas novas por dia, pessoas que perseguem sonhos de uma vida melhor. Homens que abandonam as famílias nas aldeias com o sonho de um dia os poderem chamar para viverem na grande cidade. Mulheres que “caíram em desgraça” numa sociedade rural e tradicionalista, e que procuram a vida mais cosmopolita para se enquadrarem na sociedade moderna.
Crianças, muitas órfãs, outras abandonadas ou perdidas, que sem opção sobrevivem à pobreza e miséria. Todos habitam as mesmas ruas, de dia e de noite.
Durante o dia procuram fazer dinheiro, vendendo tudo o que possamos imaginar, desde fechos de kispos até dentes. Ultrapassam o limite da criatividade e da pro-actividade, tornando-se “limpadores de ouvidos” ou “barbeiros de rua”. Tentam ganhar mais uma rupia aqui e ali, tentando ludibriar um turista mais incauto, levando-o para uma loja ou agência de viagens. São criativos, porque têm de o ser.
Estranhamente, na generalidade, não roubam, nem são violentos. Sobrevivem com os valores religiosos que já passam pelas gerações há anos. À noite, dormem nas ruas de Calcutá, deitados em pedaços de cartão, espalhados pela cidade. Amontoam-se debaixo dos viadutos, nas estações de comboio, nas áreas mais resguardadas da cidade. As inúmeras bocas de água de incêndio servem para se lavarem, lavarem as roupas e tentar manter um aspecto limpo e asseado para procurar um novo emprego no dia que está a começar em Calcutá.
Quase todas ruas da cidade têm barracas, autênticos bairros de lata improvisados, que servem de casa e abrigo a famílias inteiras. São estes, os mais desfavorecidos, especialmente mulheres e crianças, que são vitimas de abuso sexual e que engrossam e envergonham as estatísticas indianas.
Mas a vida nem sempre é feliz para estes novos migrantes. Raramente conseguem ter finais felizes, sendo que a maioria acaba por cair em situações de pobreza extrema e regressar novamente aos locais de onde partiram. Outros acabam por perder a ligação completa com os familiares e viverem uma vida inteira como mendigos.
Mas também há histórias felizes, de pessoas que fintaram a pobreza, lutaram e venceram em Calcutá.
Para além daqueles que vivem na mais absoluta miséria, que choca especialmente quando a noite caí, pois não se trata de pobreza envergonhada, choca ainda mais a situação daqueles que trabalham arduamente, de sol-a-sol, e até pela noite dentro, e mesmo assim vivem de forma miserável.
É o caso dos condutores de riquexós, não dos auto ou cicloriquexós, mas dos riquexós puxados por homens, sem bicicleta e sem motor, apenas movidos pela força do corpo. São novos e velhos, todos muito magros, cujas veias e músculos parecem querer saltar para fora do corpo. À noite, e só quando ninguém precisa de transporte em Calcutá, dormem em verdadeiras posições de equilíbrio, deitados sobres os riquexós ou no chão, bem perto deles, para não serem roubados. Sempre que podemos, para trajectos pequenos, usamos os seus serviços. Discutimos preços até à exaustão, como fazemos sempre na Índia, até obter um preço justo, mas usávamos os seus serviços porque sabemos que isso é a diferença entre terem um prato de comida ou comer do lixo. No final da viagem, dobrávamos geralmente o valor previamente acordado, não como forma de gratificação, mas porque sabemos que esse valor lhes poderá mudar o dia. Os valores nunca são muito grandes porque as viagens são pequenas, mas a Índia é assim, não a podemos mudar, mas podemos tentar ajudar um bocadinho vários indivíduos ao longo do dia.
Calcutá não deixa ninguém indiferente e quando se caminha nas suas ruas, especialmente de madrugada, percebemos que mudar esta cidade será um trabalho de décadas, que se fará a muito custo, mas, a esperança reside na própria Índia.
A população indiana é a mais resiliente que jamais conheci, a mais lutadora, a mais criativa, a mais pro-activa. Quando a pobreza estiver erradicada de Calcutá a Índia terá realmente mudado. Calcutá será certamente o último reduto da pobreza humana da Índia.
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Belo texto, que emociona-nos e nos transporta até essa triste realidade de Calcutá. Recentemente assisti a um filme chamado Lion, que conta a história de um menino de 5 anos perdido em Calcutá, e que posteriormente acaba adotada por um casal de australianos. Este texto confirma boa parte do que vi no filme e mexeu muito comigo. Parabéns pelo belo trabalho.
Obrigada, Claudio. A Índia mexe muito comigo também por isso adoro escrever sobre ela.