Nas ESTRADAS DA GUATEMALA – De COBÁN a Chichicastenango
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É mais ou menos sabido entre a comunidade de viajantes que a Guatemala é um país pouco seguro para se viajar. Há vários perigos que espreitam ao virar de cada esquina. Há assaltos à mão armada frequentes, muitos dos quais acabam com morte, roubos por esticão, carteiristas, raptos, assassinatos, assaltos por intersecção de autocarros turísticos, acidentes de viação, violações, etc. A lista é bastante extensa. Por isso a maioria os viajantes evita as estradas da Guatemala.
Duas das regras que eu e o Rui temos sempre que viajamos são: não utilizar transporte aéreo e, sempre que possível, viajar com a população local. A primeira é fácil de cumprir, basta uma preparação exaustiva prévia e esperar que tudo corra bem. Até hoje, tudo tem corrido conforme o planeado e portanto nunca necessitamos de recorrer ao avião para cumprir nenhum itinerário. A segunda, é mais difícil de cumprir e depende essencialmente da facilidade de transporte nos lugares e das questões de segurança das estradas da Guatemala.
Quando entramos na Guatemala, vindos do Belize, estávamos tão descontraídos que passamos a fronteira na conversa com os guardas fronteiriços (que estavam deliciados por nós sermos portugueses) e não nos pediram para pagar qualquer taxa de entrada, ao contrário do que acontece com a maioria dos viajantes (a quem cobram uma taxa ilegal). Isso deixou-nos confiantes. Como falamos bem espanhol isso poderia ser uma mais-valia e funcionar como um trunfo para nos aproximarmos da população local e criar laços efémeros, mas importantes, com condutores de autocarro, revisores, parceiros de banco de autocarro, taxistas, etc.
Cruzamos a fronteira em Benque Viejo del Carmen – Melchor de Mencos, a cerca de 60 km de El Remate, pelas 17 h. Tínhamos feito o tour à gruta ATM durante o dia e estávamos cansados. Quando chegamos ao lado guatemalteco da fronteira tentamos apanhar um autocarro local para El Remate mas um grupo de homens pediam-nos imenso dinheiro pela viagem e nós brincamos e dissemos “não, obrigado”. O último autocarro que sai da fronteira para El Remate tinha saído às 16 h e, como tal, tínhamos duas hipóteses: ou apanhávamos um autocarro para Flores, que nos deixaria numa povoação a cerca de 4 km e faríamos o resto da viagem a pé ou à boleia, ou apanhávamos um táxi logo ali. Depois de virar as costas aos taxistas que nos pediam quantias exorbitantes pelo trajecto, lá conseguimos um jovem taxista que por 150 Q nos levou até ao nosso destino. Pelo caminho conversamos sobre a vida na Guatemala e percebemos a dificuldade económica que jovens como ele atravessam para criar uma família num país onde 54% da população vive abaixo do limiar de pobreza (menos de um dólar por dia).
Nesse dia não usamos transporte local, nem no dia seguinte em que fomos a Tikalàs 5.30 h da manhã e regressamos de shuttle turístico a Floresao final do dia. Depois de passar um dia em Flores o nosso destino era Semuc Champey, perto da aldeia de Langquin, e quando percebemos que usando transporte público iríamos demorar uma eternidade para lá chegar voltamos a optar por um shuttle turístico. Nessas viagens pelas estradas da Guatemala sentimos que estávamos a distanciar-nos do país. Estávamos a atravessar a Guatemala e não estávamos a conhecer o país. Fazíamos quilómetros mas eles não se traduziam em aprendizagem. Estávamos a cumprir o nosso roteiro mas não nos sentíamos recompensados.
Foi em Langquin que decidimos que iríamos privilegiar o transporte local. Começamos por dizer “não” aos tours organizados a Semuc Champey e optamos por apanhar uma carrinha de caixa-aberta para fazer o percurso de ida e volta. Mas, isso seria apenas o início da nossa aventura pelas estradas da Guatemala. Em Langquin, apanhamos um micro para Cobán, a cerca de três horas. Um “amigo” condutor de tuk-tuk arranjou-nos os dois últimos lugares sentados para uma viagem em estrada de terra batida serpenteando montanhas e floresta. Depois de nós entrarmos, o micro continuou a encher, algumas pessoas sentavam-se quase no nosso colo outras amontoavam-se no tejadilho. O micro parava a cada quilómetro percorrido mas havia sempre espaço para mais um nestas estradas da Guatemala. Quando chegamos a Cobán não fazíamos ideia onde estávamos. Começamos a caminhar em direcção ao centro de Cobán e com a ajuda da população lá nos orientamos.
Só tínhamos vindo a Cobán porque queríamos muito atravessar a região das montanhas na Guatemala. Apesar do guia da Lonely Planet desaconselhar esta viagem nas estradas da Guatemala, quer porque a estrada está praticamente intransitável, quer por questões de segurança, decidimos que queríamos fazê-lo. Tínhamos dois dias para fazer esta travessia e estávamos empenhados em fazê-la. O nosso objectivo era chegar a Quetzaltenango desde Cobán. Começamos a indagar junto do hotel Casa de Ancuña como poderíamos apanhar transporte público. A resposta foi “não sei”. Fomos a uma agência de tours que prontamente nos desaconselhou a fazer a viagem. Demasiado perigoso, demasiado lento, demasiadas ligações, nunca conseguiríamos fazê-lo no tempo previsto. Muitos demasiados para o nosso gosto. No entanto, se estivéssemos interessados poderiam-nos alugar um carro com motorista, por 180€, para a dita viagem. Seria, segundo eles, rápido e seguro. Esta conversa serviu, no entanto, para percebermos que iria haver o mercado semanal daqui a um dia, numa das cidades que ficava a meio do percurso, Chichicastenango. Ficamos muito interessados pois tratava-se de um mercado indígena numa aldeia maia. Eu e o Rui olhamos um para o outro e dissemos “vamos lá”! Se o roteiro já estava apertado ficou naquele momento completamente apinhado. Decidimos que os nossos dois dias teriam que dar para chegar a Chichicastenango desde Cobán num dia, ver o mercado no dia seguinte e nessa mesma tarde viajar para Quetzaltenango. Aos olhos do rapaz da agência parecia impossível. Garantiu-nos que não chegaríamos a tempo do mercado, mas desejou-nos boa sorte. Era hora de voltarmos às estradas da Guatemala!
Perguntamos nas ruas, nos vendedores de rua, e foi aí que conseguimos a nossa resposta, pelo menos aquela que esperávamos. Há micros que saem da praça da Catedral, em Cobán, a partir das 4.30 h da manhã com destino a Uspantan. Aí teríamos que mudar de autocarro para seguir viagem. Decidimos avançar com a nossa ideia e começar no dia seguinte bem cedo.
Às 4.45 h da manhã estávamos a sair de Cobán. A noite estava cerrada e sabíamos que era perigoso. Dois estrangeiros a viajarem em transporte público durante a noite não é de todo recomendável. Ainda para mais na região das montanhas, uma área onde há menos de 10 anos, num cenário de guerra civil, os raptos, sequestros e assassinatos eram bastante frequentes. Entre Cobán e Uspantan o troço da estrada é bastante sinuoso, serpenteando montanhas e floresta, ultrapassando deslizamentos, desabamentos e avalanches de detritos gigantescas. Uma destas avalanches de detritos destruiu 5 km de estrada, em 2008, e desde essa altura para percorrer esse troço é necessário os veículos atravessarem os materiais mobilizados ao longo da vertente como se de uma prova de obstáculos se tratasse. Os locais tratam da manutenção desta área e cobram “propina” aos veículos que por aqui passam. O sol estava a nascer quando aqui passamos mas vimos perfeitamente o risco que corríamos. A montanha desabou completamente. Mas, para que estivéssemos cientes dos riscos, frequentemente passamos por pequenos deslizamentos.
Imagens retiradas da Web
A viagem que deveria demorar cerca de 3 – 4 horas fez-se em menos de três. Ficamos super satisfeitos. Estava a correr super bem. Tão bem que mal chegamos a Uspantan arranjamos logo outro micro que nos levaria até Santa Cruz del Quiché. Só tivemos que esperar 20 minutos; vinte minutos precisos que me permitiram tirar fotografias a um grupo de vendedores de lenha que se juntavam na pequena praça local. As pessoas eram simpáticas, riam, sorriam, brincavam e pediam fotografias. Estavam contentes por estarmos ali. Há muito que os turistas deixaram de vir, queixavam-se. Desaconselham-nos, dizem com ar triste.
Depois de trocar as mochilas de tejadilho da micro, saímos para mais uma viagem de cerca de três horas. Pelo caminho paramos nas aldeias, cruzamos rios e vales encantadores, subimos e descemos montanhas que lembram os Alpes e conhecemos a Guatemala. Dividimos o micro com crianças que urinaram e fizeram necessidades lá dentro, mulheres que discutiam, crianças que choravam, jovens que se pintavam, homens de catana que se deslocavam para os campos trabalhar. As mangas, os ananáses, as melancias entravam pelo micro sempre que este parava. Não consigo resistir, a fruta aqui é suculenta e deliciosa.
Chegávamos a Santa Cruz del Quiché no tempo previsto. Eram quase meio-dia e estávamos a 20 km de Chichicastenango. Não queríamos acreditar. Que bom!!!
– Se calhar até podíamos ir visitar umas ruínas maias que estão aqui a 4 km? – disse eu.
– Parece-me demasiado arriscado, disse o Rui. Não vale a pena. Levantamo-nos demasiado cedo. É melhor fazermos já o resto da viagem e descansar em Chichi. Não temos alojamento marcado e como amanhã é dia de mercado deve haver muitos turistas.
Como não fazíamos a mínima ideia de onde se apanhava o micro para Chichicastenango decidimos pedir ajuda a uma senhora que vinha connosco desde Uspantan. Ela, com os seus dois filhos, adoptaram-nos por breves minutos. Como também iam para lá, disse para a seguirmos. Pelo caminho tentava tirar fotografias às pessoas na aldeia e à praça da igreja. Os miúdos avisavam a mãe para esperar por mim e assim chegamos ao terminal. Não há chicken buses para fazer este trajecto, há semelhança dos outros que tínhamos feito hoje, só há micros, mas desta vez já estava cheio. No entanto, como em todos os outros, desta vez nós éramos o “cabe sempre mais um ou dois”. Lá se apertaram todos e nós entramos.
– É só para fazer 20 minutos, não custa nada. Daqui a pouco estamos lá. – disse o Rui.
– O rapaz da agência de Cobán dizia que não íamos chegar num dia. Ah ah ah ah, não só chegaremos num dia como vamos almoçar a Chichicastenango. – disse eu, super animada.
Já brincávamos com a situação quando o micro pára numa fila. Depois de cinco minutos parados percebemos que teríamos que esperar cerca de meia hora porque tinham cortado a estrada para reparar uma ponte. Mas, a meia hora transformou-se numa hora. Estávamos apinhados no micro. Não conseguia mexer as pernas nem os braços. Tinha o corpo dormente e o tempo não passava. Estava um calor insuportável dentro do micro. As pessoas não saiam e nós estávamos na parte traseira. Não conseguíamos sair dali. O tempo foi passando e já lá estávamos há quase duas horas parados nas estradas da Guatemala. Já nem conseguia sentir os dedos dos pés e o calor estava a provocar-me quebras de tensão. Pedi às pessoas para saírem. Não conseguia estar mais tempo ali. Ainda bem que o fiz. Cá fora havia vento e conseguia respirar. Quando estiquei as pernas senti o sangue correr de novo nas veias e respirei fundo.
– Estávamos a gozar… pega lá que é para aprenderes – brincou o Rui.
– Que cena, estava tudo a correr tão bem!
Estivemos ali parados quase quatro horas nas estradas da Guatemala. Quando a fila começou a andar demorámos 20 minutos a chegar a Chichicastenango. De mochila às costas fomos procurar um alojamento. Optamos pela Posada El Telefono, com vista sobre o cemitério. Caímos numa cama boa e barata como dois malucos. Começava a chover torrencialmente lá fora e nós tínhamos chegado a Chichicastenango. A primeira etapa da nossa jornada estava superada, amanhã seria um novo dia.
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Geógrafa com uma enorme paixão pelas viagens e pelo mundo. Desde muito cedo que as viagens de exploração fazem parte da sua vida. A busca do conhecimento do mundo leva-a em direcção a culturas perdidas e ameaçadas, tentando percebe-las. Hoje é também líder de viagens de aventura na Nomad.
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