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ONDE DORMIR NO EGIPTO | Os melhores e piores hotéis onde ficamos alojados (terra por terra)
Onde andamos nós a dormir este tempo todo? É essa a pergunta que nos fazem várias vezes. A resposta é mais difícil de dar porque percorremos um leque bastante diversificado de alojamentos. Dormimos em sítios ímpares e invulgarmente belos. Ficamos noutros que nem aos cães fariam inveja, mas no fundo todos eles acabaram por completar uma viagem magnífica que agora terminou. Cada um deles, à sua maneira, contribuiu para a nossa aventura e para o sucesso desta viagem. Vejamos então onde dormir no Egipto.
CAIRO
Quando o avião aterrou no Cairo apanhamos um táxi para Khan el-Khalili e arranjamos um quarto no Hotel El-Hussein, na alma do bairro Islâmico. O hotel tem um esplendor esquecido, tem carisma e algo que que nos transporta para um dos cenários dos livros de Agatha Christie. No átrio um centro telefónico com diferentes conectores lembra que em tempos este hotel terá sido um local de referência nesta cidade. O dono, bastante simpático, arranja-nos um quarto duplo com vista sobre a praça. Subo o elevador, que parece ter mais de um século, e que nos transporta nesta viagem no tempo. No nosso quarto, uma varanda com duas portadas abrem-se para a maravilhosa praça el-Hussein e para a mesquita. Lá em baixo a vida corre ao ritmo do Islão. É final da tarde e as pessoas inundam as ruas, fazendo as delícias dos vendedores de comida. Este quarto tem tudo aquilo que um viajante pode desejar do Cairo. É barato, temos cama lavada, wc, uma vista fabulosa e até um frigorífico para refrescar as bebidas. Isto permite-nos combater os 39ºC que estão no exterior. Para além disso, estamos no mais característico dos bairros da cidade onde os turistas aparecem apenas de forma fugaz para fazer compras. À noite as ruas são nossas e dos muçulmanos. Alguns guias turísticos desaconselham a pernoita dos turistas em Khan el-Khalili pois têm acontecido aqui alguns atentados terroristas nos últimos anos. É também pela escassez de turistas que o bairro tem tanto carisma. Descobrimos, no entanto, que os muçulmanos não dormem (não pelo menos antes das 4h da manhã) e que as orações da noite nos vão fazer companhia por muito tempo! De manhã vemos o nascer do sol nos inúmeros minaretes que nos rodeiam.
No entanto, no Cairo estivemos em dois locais diferentes. Porque os guias desaconselhavam a estada dos turistas no bairro islâmico tínhamos feito reserva antecipadamente num hostel no centro da cidade. O Lialy Hostel situa-se no centro nevrálgico do Cairo, já que fica na Midan Tallat Harb . Não tem o esplendor ou o carisma do el-Hussein mas, para quem gosta de locais práticos, serve. Para nós, não foi uma grande escolha. A minha cama partiu a meio da noite (e juro que só estava a dormir). Pode-se arranjar vários tours a partir daqui embora nós não o tenhamos feito. Tentamos apenas que nos comprassem os bilhetes de comboio mas quando mostramos ao empregado que sabíamos o preço do bilhete ele rapidamente nos disse que não o faziam! A simpatia dos empregados não era o forte deste hostel! Sendo assim, para nós, este local não passou do sítio onde dormimos duas noites.
ALEXANDRIA
Apesar de sermos ignorados na estação de comboios enquanto tentamos comprar bilhetes, de nos terem empurrado de empregado para empregado, lá conseguimos bilhetes para Alexandria. Aqui, esperava-nos o Hotel Acrópole, uma instituição para viajantes com orçamentos limitados mas que querem ficar no centro da cidade. Estrangeiros nem vê-los!
A subida naquele elevador deveria ter logo denunciado que não nos esperava nada de bom. O elevador subia três andares em que passava por trechos sem parede! O hotel faz fronteira com o Hotel Cecil, um ex-libris de Alexandria, mas não deve ter nada em comum com este último. Pagamos cerca de 20€ por um quarto duplo com varanda, mas com uma vista minúscula sobre o mar Mediterrâneo!Pagamos bem, mas tivemos direito a outros extras… uma barata super simpática fez-nos companhia durante a noite e chegou a mostrar-se várias vezes. Infelizmente corria mais do que eu e, embora eu tivesse tentado, não consegui tirar-lhe uma fotografia! Era suposto termos WC, mas estava avariado pelo que tivemos que utilizar o WC comum, esse sim digno de registo fotográfico. Para quem já viajou na Índia, este local choca pouco, mas,confesso que nem lá apanhei WCs assim! A banheira tirou-nos qualquer vontade que tivéssemos de tomar banho (e estava calor!) e a sanita quase nos provocava prisão de ventre! Já o lavatório… era preferível vir lavar as mãos aos cafés na rua. Em alternativa tínhamos um outro WC mas… ainda estava em construção!!! A simpatia do pessoal também não era o seu forte. Foi sem saudades que saímos do Acrópole e que apanhamos um autocarro nocturno para Siwa, um oásis no Deserto Líbio.
SIWA
Durante as 8 horas de viagem, com mais de 35º C dentro do autocarro, passei a noite a dormir “embrulhada” no meu lenço islâmico. O resultado foi uma transpiração tal que o passaporte que levava numa bolsa junto ao corpo ficou encharcado e a fotografia descolorou e manchou a folha de rosto (isto viria a ser um problema para entrar e sair de Israel).
Chegamos a Siwa pelas seis horas da manhã e caminhamos de mochila às costas com o sol a nascer procurando um local para nos alojarmos. Tínhamos uma reserva feita por mail no Kelany Hotel, que não nos deixou entrar porque queria o dobro do dinheiro do que tínhamos acordado. Tentamos o Hotel Yussef mas estava cheio com um grupo de egípcios. Fomos então para o Palm Trees Hotel.
Foi uma boa escolha porque arranjamos um quarto numa espécie de bungalow no palmeiral. O Mohamed era muito simpático e arranjou-nos o tour no Grande Mar de Areia com pernoita no deserto. Foi também aqui que conseguimos arranjar um motorista que pela “módica quantia” de 200€(!) nos levou atravessar o deserto entre Siwa e Bahariya. O Palm Trees Hotel é, provavelmente, o melhor local para se ficar em Siwa. É acolhedor, tem um espaço comum no meio do palmeiral e faz-nos sentir relaxados. É bastante frequentado, da parte da manhã, por população local que organiza medicamentos em caixas de plástico!!! Não chegamos a perceber se eram alguma ONG ou um grupo terrorista! ;-))) Também não quisemos perguntar!
Depois de percorrer o Grande Mar de Areia durante horas num jipe que (para variar) teve um furo, e de nos termos deleitado a tomar banho nos lagos do deserto, chegamos ao nosso local de repouso – uma tenda na orla do deserto. Uma noite bem passada, com o Rui a dormir dentro da tenda e eu cá fora porque não conseguia respirar com o calor. De manhã, pelas 6 h, descubro que as moscas são um companhia inevitável no deserto. No entanto, são também um excelente despertador para nos avisar que vem aí o nascer do sol!
BAHARIYA
Em Bahariya, escolhemos o Desert Safari Home para ficarmos alojados. É bem verdade que a família do Badri nos fez sentir em casa. Mohamed, o filho de Badri (o dono), é uma simpatia e depois de conversarmos no alpendre da casa, leva-nos a ver o pôr-do-sol no lago e palmeiral da povoação. É aqui que arranjamos o tour para o Deserto Branco e Negro e, embora tenhamos sido levados no preço, correu super bem e valeu cada “Egiptian pound”. O Desert Safari Home é, provavelmente, o melhor local para se ficar em Bahariya, embora as mulheres sozinhas devam ter algum cuidado (como falamos no post da Condição da mulher nos oásis do deserto egípcio). Apesar de sabermos que o comportamento do Badri não era o mesmo com todos os hóspedes, a verdade é que nós (pessoalmente) não tivemos razão de queixa, até pelo contrário. Ele tratou-nos de tudo, fez-nos jantar duas noites, a esposa ofereceu-nos da maravilhosa sobremesa que tinha confeccionado e o filho foi incansável quando nos levou para apanhar o autocarro nocturno para Dakhla.
Passamos dois dias no chamado Deserto Ocidental do Egipto que incluí o Deserto Branco, o Deserto Negro e o que os locais chamam de Deserto Ocidental, que é uma espécie de transição entre os dois. É um lugar maravilhoso e de visita obrigatória para quem aprecia as obras da mãe natureza. Dormimos no Deserto Ocidental sem tendas, num abrigo improvisado pelo Sayid, o nosso motorista do jipe, e tendo como tecto as estrelas maravilhosas. Dormimos como crianças apesar do calor insuportável durante a noite. Estávamos sozinhos com a Julie, uma canadiana, Taz, um americano de descendência indiana e paquistanesa, e o Sayid. No entanto, antes de adormecermos apareceram as raposas do deserto e de manhã… as moscas!
DAKHLA
A viagem de autocarro de Bahariya para Dakhla foi medonha e uma das mais mal dormidas desta aventura, já que foi recheada de contratempos emocionais (ver post Condição da Mulher nos oásis do deserto egípcio). Chegamos ao oásis de Dakhla pelas 7 horas da manhã e, de mochila às costas, arranjamos um quarto duplo no Gardens Hotel a 4€ na povoação de Mut. Pelo preço até podia ser muito mau mas não era! Um quarto super simples num hotel e numa povoação sem turistas! Tínhamos wc, duas camas e uma ventoinha que nos permitia sobreviver durante as horas de mais calor da parte da tarde e durante a noite. Um dos empregados, bastante simpático por sinal, deixou-nos utilizar a cozinha (também digna de registo fotográfico mas o Rui só teve coragem de roubar esta face à simpatia do nosso anfitrião) para nós cozinharmos o jantar.
AL-KHARGA
Seguiu-se Al-Kharga, numa visita apenas durante o dia, e depois Asyut. Apesar de termos lá ficado a dormir e de termos estado dois dias na cidade tudo não passou de um contratempo, já que não conseguimos bilhete de comboio para o Assuão. Alojados no Hotel El-Hussein numa das cidades consideradas “covil de terroristas islâmicos” dormimos bem e relaxados num quartinho com ar condicionado e TV. Um luxo que não estávamos habituados!
ASYUT
Depois de sermos escoltados pela polícia em Asyut até à entrada do comboio, lá passamos mais uma noite a dormir no comboio. Oito horas de viagem nocturna poderia dar para dormir bem, mas descobrimos que os egípcios adoram correr no comboio durante a noite. Mais uma noite mal dormida!
ASSUÃO
No Assuão escolhemos ficar alojados no Hotel Keylany e ainda bem que o fizemos. É o local ideal para viajantes. Os quartos são simples mas têm ar condicionado (imprescindível no Verão do Assuão), TV e frigorífico, que nos permite congelar água nas garrafas para beber durante o dia.Para além disso, tinha um bom pequeno almoço e… uma piscina no terraço! Sim, um hostel para mochileiros com piscina no terraço! Era pequena, mas fazia as minhas delicias de manhã, à tarde e à noite! Aqueles banhos à noite no Assuão foram inesquecíveis. Foi através do hotel que arranjamos o tour para Abu Simbel. Pagamos 7€ para visitar Abu Simbel, o Templo de Philae, a Barragem do Assuão e o Obelisco Inacabado. Obviamente que este preço não incluía a entrada nos locais mas foi um EXCELENTE negócio. O Keylany é o local ideal para se ficar alojado no Assuão.
CRUZEIRO NO NILO
A bordo do Cruzeiro do Nilo pudemos desfrutar do luxo dos turistas de 5*. Num camarote duplo com camas confortáveis, lençóis imaculados, toalhas lavadas várias vezes ao dia, TV, frigorífico e um ar condicionado super eficaz, desfrutamos das maravilhas do Nilo ao longo de três noites. Momentos de luxo que viríamos a amargurar no hostel seguinte!
LUXOR
Chegados a Luxor, acabou o cruzeiro. De mochila às costas deixamos para trás o Imperor Crown e dirigimo-nos ao Princess Hostel, num bairro longe das atracções turísticas. Pagamos duas noites mas ficamos uma. Um quarto duplo a 6€ por noite, em Luxor, não podia ser bom! Foi provavelmente a pior noite dormida da viagem. O quarto era simples, tinha uma ventoinha super-lenta e o calor era insuportável. De dia e de noite o nosso corpo escorria água. Com roupa , ou sem roupa, era impossível dormir. A água nas garrafas não dava para beber. Parecia chá! Foi uma noite horrível. Para completar… ao lado encontrava-se uma mesquita que nos enfiava dentro do quarto as orações nocturnas vindas directamente do altifalante! Mas os donos eram simpáticos, e até arranjamos um táxi e as permissões para viajar para Abydos e Dendara a partir do hostel. O preço foi muito bem “marralhado” mas foi um óptimo negócio.
HURGADHA
Saímos mais cedo de Luxor porque optamos por ir à noite para Hurgadha, em vez do autocarro da manhã seguinte. A viagem é relativamente rápida e em 6 horas chegamos à costa do Mar Vermelho. O Triton Empire Inn foi a nossa escolha. É possivelmente uma das poucas opções “budget” na cidade. A linha de costa está cheia de hotéis e resorts e o viajante independente não tem acesso à praia. A única opção é pagar para entrar nas praias privadas dos hotéis. O hostel onde ficamos faz parte da cadeia de Hotéis Triton Empire e, como tal, ficamos alojados num local muito mais simples, mas pudemos utilizar as praias e piscinas da cadeia do resort. Nada mau… Acabou por ser um óptimo local já que o pequeno almoço de buffet era o mesmo dos clientes do hotel e tínhamos acesso às magníficas piscinas cheias de russos e de turistas do leste da Europa. A simpatia do pessoal é que deixava MUITO a desejar…
Nesta viagem tivemos que enfrentar um contratempo. O ferry de Hurghada para Sharm El-Sheik não estava a funcionar, e isso alterou-nos completamente o esquema, já que teríamos que perder imenso tempo para fazer a mesma viagem por terra. Tivemos que sair um dia mais cedo de Hurghada, numa viagem de autocarro até ao Suez. Foram 5 horas de viagem onde aproveitamos para dormir. Depois de chegados ao Suez, tivemos que ficar na estação à espera desde as 3h da manhã até às 11h. Ainda fui dormindo, ora encostada à minha mochila, ora sentada na esplanada, mas estes locais não são muito seguros e temos sempre que estar com um olho aberto! Foram horas que pareceram séculos! De seguida mais um autocarro e dez horas de viagem. Tentamos dormir, mas o corpo está todo moído e já não temos posição. A viagem parecia que nunca mais acabava! Dez horas… meu Deus, custou TANTO, TANTO!
DAHAB
Quando chegamos a Dahab foi a cereja no topo do bolo. O Egipto reservou-nos o melhor para o fim. Fizemos reserva pela internet em dois hostels diferentes: o Red Sea Relax e o Dahab Dorms. Afinal era tudo o mesmo! O rapaz que nos recebeu arranjou-nos um quarto que mais parece um bungalow virado para a piscina. Temos três camas no quarto com lençóis e toalhas imaculadas e mais uma vez… TV e frigorífico. A ventoinha deu lugar a um ar condicionado eficaz. Maravilha! Cá fora uma piscina grande e fantástica que fez as nossas delícias nos dias que aqui passamos. O pequeno-almoço é fenomenal e até podemos escolher no buffet delícias egípcias! Os 20€ por dia que aqui pagamos pelo quarto valeram cada cêntimo!
MONTE SINAI
A subida ao Monte Sinai, com pernoita no cume, foi outra das nossas aventuras. Subimos a montanha durante a noite e chegamos ao topo às 3 h da manhã. Tínhamos levado os sacos-camas na mochila e alugamos dois colchões lá em cima. Montamos o nosso “quartinho” voltados para leste e aguardamos o nascer do sol. Foi uma noite muito bem passada até que, meia hora antes do sol nascer, o nosso “quarto” ser invadido por “resmas” de turistas!
E assim vivemos nós os dias que passamos no Egipto. Às vezes com mais sorte, outras vezes com menos, mas todas as nossas experiências foram dignas de registo! Estes foram os lugares que elegemos para dormir no Egipto.
A MULHER NO EGIPTO – Condição da mulher na sociedade islâmica dos oásis egípcios
É mais ou menos sabido pela sociedade ocidental que a forma como o Islão trata as suas mulheres não é a melhor. No entanto, apesar de haver sociedades islâmicas em que a mulher já tem um papel importante e reconhecido na sociedade, há outras sociedades com tradições ancestrais muito enraizadas e onde o papel da mulher na sociedade é, no mínimo, estranho aos nossos olhos.
Os valores culturais entre a sociedade ocidental e a egípcia, especialmente a dos oásis, estão em patamares opostos. Aqui, uma mulher que não se cubra, incluindo a cabeça, é vista como tendo uma atitude provocatória. Seria o equivalente a percorrer as ruas das nossas cidades em roupa interior. Como tal, a maioria dos homens egípcios encaram a forma descontraída e desportiva de como as mulheres ocidentais se vestem como um convite sexual. Qualquer mulher ocidental que percorra as ruas sozinha arrisca-se, no mínimo, a ser assediada sexualmente e mesmo a ser apalpada. Como tal, não é fácil para uma mulher sozinha viajar no Egipto. São vários e mirabolantes os testemunhos das mulheres que sofrem diversas formas de assédio por terras faraónicas. As viagens de autocarro resumem-se a horas intermináveis em que os homens as apalpam e elas não se podem queixar. Queixar a quem? Para todos os homens, foram elas que provocaram. Para as outras mulheres, é uma bênção as estrangeiras estarem aqui. Sentem-se menos pressionadas pelos homens e, por muita compaixão que sintam, nunca se atreveriam a dizer algo. Apesar de intolerável aos olhos do ocidente, estes comportamentos por parte dos homens está inserido num legado cultural centenário onde a mulher continua a ser uma propriedade (primeiro do pai e depois do marido).
Se o tipo de comportamento “normal” numa sociedade como a egípcia é assim, desde os locais mais turísticos até aos mais remotos, nestes últimos as coisas podem atingir proporções muito mais graves. Nos dias que passamos nos oásis do deserto, pudemos aperceber-nos de práticas que aqui ocorrem com as mulheres e que muito nos chocam. Enquanto estávamos em Siwa reparamos que durante o dia as mulheres raramente saem a rua e quando o fazem andam sempre acompanhadas de um homem, seja ele filho, marido ou pai. É muito comum vermos mulheres a serem transportadas em carroças conduzidas por crianças (do sexo masculino) com cerca de 4 – 5 anos. Todas elas vestem roupas largas, tapam a cara de preto e não conseguimos ver nenhuma parte do seu corpo. Não sabemos se são jovens ou velhas, se são bonitas ou feias… Têm, inclusive as mãos cobertas por luvas. No entanto, o que mais choca é a sua atitude de completa submissão. Olham para o chão. Viram a cara tapada para onde não há ninguém e nunca falam. E incomodativo ver a sua situação.
Siwa é conhecida por ser uma sociedade muito fechada com tradições muito firmes, no entanto, quando chegamos a Baharyia apercebemo-nos que ainda havia muito pior. Na noite em que estávamos à espera do autocarro para Daklha apercebi-me de uma mulher com a cara completamente desfigurada. Quando entramos no autocarro vi outra. Até aqui o meu subconsciente nada me disse mas no fundo achei estranho.
Uma vez dentro do autocarro tivemos outro problema. A viagem era nocturna e mal os homens me viram entrar começaram a dividir-se individualmente pelos bancos para que eu fosse obrigada a sentar-me ao lado de um deles. Senti-me como uma presa a ser atirada a um bando de leões. Olhei para o Rui e disse-lhe que nunca me sentaria ao lado de nenhum deles. Ou íamos os dois no mesmo banco ou os dois sentados no chão. O Rui discutiu com o homem do autocarro e nada se parecia resolver. Nenhum homem estava disposto a mudar de lugar. De repente olho e vejo todas as mulheres a olharem para fora como que evitando o contacto visual comigo. No entanto, uma delas olha-me nos olhos e faz sinal para eu me submeter. Quando olhei com atenção vi o seu rosto exposto à luz da lua e completamente deformado. O meu corpo gelou. Gelei de cima a baixo. Naquele momento vi claramente aquilo que tantas vezes tinha pesquisado na internet – os crimes de honra. Não é normal haver três mulheres com o rosto completamente queimado e desfigurado num autocarro nocturno. Lembrei-me dos livros que li (inclusive o Queimada Viva) e das fotografias que vi na internet. Fiquei petrificada. Estas mulheres sim, são obrigadas o mostrar o rosto. São exemplos para todas as outras do que a desobediência ao homem pode provocar.
Entretanto o Rui conseguiu lugar para nós, lado a lado. Encaixo-me num cantinho do autocarro. Cubro-me toda. Estão seguramente mais de 40 graus e eu visto mais uma camisola de manga comprida e enrolo-me com o lenço. Tapo-me com a mochila. Todos os homens olham para mim com um ar predador. A viagem demora a noite toda e eu não consigo pregar o olho enquanto cruzamos o deserto a caminho de mais um oásis.
Durante a viagem lembro uma conversa do dono do hotel. As raparigas de Baharyia são vítimas de Mutilação Genital Feminina aos 9 anos. A excisão deixa-as sem qualquer tipo de prazer sexual para o resto da vida. Esta prática, ao que parece está muito enraizada por aqui e os homens utilizam a frigidez das suas mulheres como desculpa para assediarem as mulheres estrangeiras. Que mundo estranho este em que vivemos! Com toda a diversidade cultural existente por vezes encaramos situações que aos nossos olhos são, claramente, crime, mas aos olhos de outra sociedade são manifestações culturais. A mulher é uma propriedade. Não posso esquecer isso. É isso que regula a vida por aqui e é isso que dita os actos da população. O que aos meus olhos é estranho, nojento e repugnante, não passam de raízes culturais.
Para trás deixei ficar um bocado do meu medo. Na paragem do autocarro ficou Julia, a canadiana que viaja sozinha, e espera o autocarro da uma e meia da manhã para o Cairo. Tem vinte e um anos. Foi apalpada na viagem do Cairo para Baharyia, foi vitima de assédios sexuais constantes por aqui e, o dono do hotel onde ficamos chegou inclusive a entrar-lhe no quarto e a fechar a porta. Este mesmo dono montou mil e um esquemas para que ela não tivesse grande mobilidade e tenta persegui-la. Julia espera sentada com o filho do dono do hotel pelo autocarro que só chegará daqui por uma ou duas horas. Quando saí apertei-lhe a mão e disse-lhe “stay safe, please“. Até agora ainda não soube nada dela. Espero que me responda ao email que já lhe enviei há dois dias. Sinto o coração angustiado.
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