“Ice Lady”, é assim que me chamam a bordo do cargueiro da Navimag depois de ser baptizada por um sexagenário norte-americano que viaja com o filho em direcção ao Cabo Horn. Após algumas conversas superficiais com os passageiros do barco nas primeiras horas de viagem, rapidamente me transformo na “glaciologista” de serviço e inclusive o guia me pede para dar algumas informações sobre as paisagens glaciares que vamos atravessando. A Ice Lady sente-se em casa e aproveita esta oportunidade para melhorar o seu discurso científico em inglês.

, na região da Última Esperança. O barco demora quatro dias a atravessar os canais e fiordes chilenos e, inclusive, num dos dias entra no Oceano Pacífico e no Golfo das Penas. Esta viagem foi uma autêntica descoberta para mim. Como todo o viajante tinha uma certa expectativa que em muito foi superada. Imaginar-me a cruzar fiordes seguidos de fiordes e tendo por companhia leões-marinhos, pinguins e baleias foi algo que nunca imaginei acontecer.

Durante as últimas glaciações esta área do Chile esteve completamente coberta por enormes glaciares que se estendiam desde os cumes da cordilheira Andina até ao Pacífico. Estes glaciares erodiram as montanhas e criaram enormes vales em forma de U, que posteriormente ao desaparecimento dos glaciares, foram ocupados pelas águas do oceano que registaram uma subida. Sendo assim, o Pacifico entrou dentro dos vales glaciares criando fiordes. Os glaciares continuam aqui. Mais pequenos, recuados e resguardados nos vales ou pendurados nas vertentes das montanhas mais altas. O glaciar Pio XI ou o de San Rafael são dos maiores glaciares de maré do mundo e terminam nestes fiordes.

A linha de costa do sul
Chile transformou-se assim numa área bastante recortada repleta de baías e canais que permitem aos barcos navegar em águas mais calmas do que as do oceano. Apesar disso, a população não se fixou nesta linha de costa já que as temperaturas aqui registadas são muito baixas devido à corrente fria de
Humboldt.

Durante dias só avistei os fiordes. Entre Puerto Montt e Puerto Natales só existe uma povoação, que alcanço no terceiro dia de viagem; chama-se
Puerto Edén. Apesar de para mim parecer um paraíso, a verdade é que para a população que aqui vive deve ser pouco paradisíaca já que só existem 250 habitantes e pouco mais do que 20 casas. A minha curta visita a esta povoação permite-me perceber o quanto isolados estão do resto do mundo. Os últimos sobreviventes dos Oman vivem aqui e não tarda estarão extintos. A única mulher tem 92 anos, 6 maridos e 2 filhos homens. Quando morrerem será o fim da população indígena dos fiordes.

Juntamente com os outros passageiros do barco tomo o trilho que me leva ao
Parque Nacional de O’Higgins. É maravilhoso. A Terra selvagem, ainda não tocada pelo Homem.

É bom sentir o chão firme debaixo dos pés depois de navegar pelos fiordes do Chile. A noite passada foi tenebrosa. O barco deixou os fiordes e entrou no oceano Pacífico (que de Pacífico tem pouco) e no Golfo das Penas. Como é que
Fernão Magalhães baptiza o oceano com este nome? Esta é a parte mais complicada da viagem. São 12 horas de ondas de 3 a 4 metros em que o barco salta, cai, abana. Felizmente, este trajecto foi feito de noite e isso, em muito, contribuiu para a baixa taxa de enjoos registada. No último dia, as temperaturas baixam bastante, atingiu-se -1ºC. Vejo pequenos pinguins de Humboldt a nadar nos fiordes. Fogem do inverno austral. Lobos-marinhos e golfinhos saltam ao lado do barco. De manhã bem cedo vi inclusive baleias ao longe. A água a jorrar para o céu e a barbatana no seu dorso a curtar as ondas do oceano. É surreal.

Se uma viagem num cargueiro pelos fiordes do Chile pode ser um autêntico pesadelo, a verdade é que também pode ser um sonho. Foi isso que senti quando o cargueiro da Navimag chegou a Puerto Natales. A chegada ao porto é o culminar de quatro dias fabulosos em que conheci viajantes extraordinários e contemplei paisagens inimagináveis.

A “mulher de gelo” despede-se assim dos fiordes do Chile e dirige-se para o
Estreito de Magalhães e Canal de Beagle. Outros marcos geográficos a que nenhum geógrafo pode ficar indiferente.

Olá Alexandre,
Ainda bem que gostaste da tua viagem. Não vejo o dia de conhecer África Negra. quero muito mas está muito caro para mim. Vai ter que esperar algum tempo.
Eu sou geógrafa de formação mas agora estou a fazer o doutoramento em Geomorfologia Glaciar na Argentina. É por isso que viajo tanto pela América do Sul e especialmente por paisagens glaciares.
Sinto-me uma sortuda porque consigo conciliar as duas grandes paixões da minha vida, as viagens e a glaciologia. 🙂
bjs
Carla,
Enquanto navegava por essas águas frias, eu banhava-me noutras mais quentes, no Golfo da Guiné, mesmo na linha que divide os dois hemisférios. Foram alguns dias fantásticos, em São Tomé e Príncipe, longe da tecnologia que permite manter-nos em contacto com o mundo. Agora que regressei, retomei a sua viagem e este cruzeiro, particularmente, deixou-me cheio de curiosidade. Inclusive de perguntar-lhe sobre a sua especialidade. Será a oceanografia?
Beijo,
Alexandre