Podem ser ideias pré-concebidas, mas a verdade é que sempre que entrámos num país “novo” temos expectativas e vamos carregados de estereótipos. O Cazaquistão e Almaty não eram excepção e foi assim que lá entrámos.
Saímos de Bishkek, capital do Quirguistão, de manhã bem cedo, com destino a Almaty, no Cazaquistão. As cidades são próximas, pouco mais do que 250 km, mas tínhamos que atravessar uma fronteira e estas passagens nem sempre são fáceis. Sendo assim, contabilizámos cerca de 4 horas para a viagem e agendámos com a nossa visita à Aldeia SOS de Almaty para as 12 h.
Porém a viagem demorou bem mais tempo do que o previsto. A passagem da fronteira foi rápida, cerca de 30 minutos, mas na estrada para Almaty apanhámos muito trânsito e obras, especialmente cerca de 50 km antes da cidade. Na fronteira ainda perdemos algum tempo a cambiar dinheiro e a fazer o seguro do carro. Sendo assim, quando chegámos a Almaty já eram 13 h.
Mira e Svetnia estavam à nossa espera. Mira é a directora da Aldeia SOS de Almaty e mal a conhecemos ficamos logo com a impressão que ela era uma segunda mãe daquelas crianças, um espécie de professora primária.
Svetnia é uma jovem de 23 anos criada na Aldeia SOS. Svetnia terminou o curso de Relações Internacionais e vive agora uma vida semi-independente em Almaty. Veio ali receber-nos porque o seu inglês é irrepreensível. Apaixonámo-nos todos por aquela miúda no primeiro momento. Genuína, cheia de vida, sonhadora, apaixonada, inconformada, alegre, curiosa e muito sorridente. Esta era Svetnia. Cresceu na aldeia, criada por uma mãe que já se reformou. Fala-nos da sua vida e das memórias que tem da Aldeia SOS, mostrando-se um pouco triste quando puxamos a conversa sobre as condições familiares que a levaram a viver ali. Não se alargou mas disse-nos que era o normal, “famílias disfuncionais com problemas de álcool e droga”. Para não a deixar desconfortável quebramos logo ali o rumo da conversa.
Mira e Svetnia mostraram-nos a Aldeia SOS de Almaty, inclusive uma das casas, onde uma das mães nos preparou um almoço fabuloso. Para elas era apenas um lanche, para nós foi um almoço típico, cheio de iguarias e doces típicos cazaques. Desta vez não fizemos cerimónia e comemos as iguarias na companhia das nossas anfitriãs.
Conversa puxa conversa, Svetnia ia partilhando connosco algumas curiosidades sobre a situação geopolítica dos países da Ásia Central, nomeadamente do Cazaquistão. Conversámos sobre muitas coisas mas a conversa tornou-se mais intensa quando Svetnia nos disse:
– Ser mulher no Cazaquistão não é fácil.
Svetnia contou-nos que à semelhança do que se faz no Quirguistão, as raparigas cazaques ainda são raptadas e obrigadas a casar contra a sua vontade. Diz-nos que a maioria das mulheres não se sabe defender, não são educadas para isso e a pressão sobre as famílias é imensa. Confirma-nos que conhece e tem amigas a que isto aconteceu.
O Rapto da Noiva é uma prática ancestral nos países da Ásia Central. Foi caindo em desuso nas últimas décadas mas ainda continua a ser praticado no Cazaquistão e no Quirguistão. Todos os anos a Amnistia Internacional faz campanhas sensibilizando as populações para esta grave violação dos Direitos Humanos mas a verdade é que estas tradições estão muito enraizadas nas comunidades rurais e é bastante difícil e moroso combate-las.
Esta situação não era nova para nenhum de nós. Já todos tínhamos lido e ouvido falar sobre isso. No entanto, ali, na nossa frente, com aquela miúda de 23 anos a expressar medo no olhar e na face, tudo parecia mais real. Svetnia não quer uma vida normal de mulher cazaque. Recusa-se a casar cedo, como Mira lhe diz:
– Está na hora de casar e de ter os seus próprios filhos.
Svetnia rejeita. Não quer constituir família. Digo-lhe que não sou casada. Vivo com o Rui mas somos livres.
– Ah, uma relação liberal! Aqui eras logo vista como uma prostituta.
Ri. Talvez o Cazaquistão não esteja ainda pronto para isso, mesmo em Almaty, uma das maiores cidades do país. Mas, o Cazaquistão vai rapidamente fazer esse caminho e, com sorte, Svetni ainda o vai percorrer.
Depois do almoço fomos conhecer a criançada que estava na Aldeia SOS. Um grupo de rapazes e raparigas juntaram-se a nós na sala, em volta de uma mesa grande, o Zé começou a mostrar-lhes, com o mapa-mundi, o nosso país e a viagem que tínhamos feito. Svetnia ia traduzindo do inglês para o russo. Os miúdos não percebiam muito de Geografia mas certamente vão ficar bastante melhor depois desta aulinha.
Depois de aprendermos os seus nomes, começámos a aprender a falar russo e cazaque, em troca de algumas palavras em português. Mas o que a maioria deles queria era fazer perguntas sobre o nosso país:
– Quanto se ganha?
– Tem que se ir para a escola de uniforme?
– As drogas são legais?
– Que disciplinas se aprendem na escola?
As perguntas eram tantas, especialmente por um par de teenagers com os seus 14 anos, que uma das tutoras lhes ia dando uns apertos. Os miúdos adoram os materiais escolares e brinquedos que lhe levamos. Livros, cadernos, estojos, canetas, aguarelas, lápis de cor, plasticinas, jogos de quimica, bolas de futebol, etc.
Mas a criançada vibrou quando os convidámos para assinar a nossa Burra. Deixaram tudo em cima da mesa e correram todos em direcção à Burra! Pegaram nos lápis de cor e começaram a assinar e a desenhar. A Burra ganhou uma nova vida! Até o Homer Simpson teve direito a figurar na lateral da nossa burrinha.
Era hora de nos despedirmos. Ainda queríamos ir comprar pneus suplentes para a Burra e explorar Almaty. Foi, mais uma vez, com o coração cheio que nos despedimos desta Aldeia SOS e rumámos viagem.
Andámos um pouco perdidos, mas com algum custo conseguimos encontrar um armazém que vendia pneus. Com muita mímica, tentativa e erro e muita boa vontade, conseguimos comprar dois pneus para as estradas de lama da Mongólia. Tudo por 60€ e ainda recebemos umas bebidas do pessoal da garagem, enquanto esperávamos que os pneus que escolhemos viessem de táxi ali ter.
Quando chegámos ao centro de Almaty e nos alojámos já estava a ficar de noite. Saímos imediatamente para ver alguma coisa com luz mas já não havia muito tempo. Apenas conseguimos visitar o Monumento da Independência e o Memorial da II Guerra Mundial, bem como a catedral, que infelizmente estava fechada para obras. Já era noite quando chegámos à Mesquita de Almaty.
Cansados mas satisfeitos, resolvemos ir jantar a uma hamburgueria (contra minha vontade que detesto estas coisas). A rapaziada estava necessitada de comida mais “familiar” e por isso cedi de boa vontade. O dia tinha sido cheio mas os próximos prometiam ser ainda mais. Tínhamos dois dias para atravessar o Cazaquistão e fazer quase 1200 km para chegar à Rússia. A viagem prometia entrar agora numa fase mais intensa.
Se vai viajar para o Cazaquistão, estes são alguns artigos do nosso blogue que lhe podem interessar
- VISITAR ALMATY – Tudo o que precisa de saber para visitar Almaty, no Cazaquistão está neste artigo.
Relatos da nossa viagem do Rally Mongol e que passou pelo Cazaquistão
- RALLY MONGOL – CAMPOS NUCLEARES DO CAZAQUISTÃO – Um artigo em forma de crónica de viagem sobre a nossa viagem, cruzando o Cazaquistão e a área dos testes nucleares russos no tempo da União Soviética.
- RALLY MONGOL – ATRAVESSANDO AS ESTEPES DO CAZAQUISTÃO – Um artigo em forma de crónica de viagem sobre a nossa viagem, cruzando o Cazaquistão e a zona das suas estepes.
- RALLY MONGOL – VISITA À ALDEIA SOS DE ALMATY – Um artigo em forma de crónica de viagem sobre a nossa viagem no Rally Mongol na cidade de Almaty.
So conheço o Agostinho, mas fico muito feliz por voces todos pela realizaçao do vosso fantastico projeto. Muitos parabens e um regresso sem incidentes. Abraço, que a força esteja com voces.
Obrigada 😀